sexta-feira, 25 de agosto de 2006

Casa, Rio de Janeiro
Dançando sobre o entulho em Haret Hreik

O Hassan Nasrallah é um novo tipo de lider árabe. Ele não faz promessas extravagantes, ou ameaças vazias. Longe da histrionice nasseriana, ele fala com uma voz pausada, irradiando calma e simpatia, e pontuando o discurso com a ocasional piadinha. Estou falando sério, dê uma olhada nas suas entrevistas. Quem entende árabe diz que ele transita com desenvoltura entre o árabe clássico (quorânico) e o coloquial do dialeto libanês. Ele é, em suma, tudo o que os candidatos a sanguessuga no horario eleitoral almejam: alguem que esbanja credibilidade para seu público alvo, e que projeta ao mesmo tempo competência e humildade.

Compare isso com a verborragia grandiloquente típica dos líderes árabes que já entusiasmaram multidões no passado. O Nasser provavelmente foi o campeão na categoria individual (embora Saddam 'mãe de todas as batalhas' Hussein e Yasser 'até Jerusalem' Arafat ofereçam um páreo duro). Mas no esforço por equipes, os Sírios mantém larga liderança. Desde 1948 eles lançam ameaças cabulosas de jogar os judeus no mar, e anunciam uma série de vitórias espetaculares, ao mesmo tempo em que levam surra após surra dos israelenses. Mantendo a tradição, Bashar al Assad vem se vangloriando por tabela da 'vitória da resistência', enquanto fulmina a covardia dos demais líderes árabes e ameaça retomar as colinas de Golan a força. O único problema é que ninguem parece leva-lo muito a sério...


Se ele esperava que o resto do mundo viesse até Damasco implorando por sua ajuda para acabar com a guerra, deve ter ficado muito desapontado. Apesar de inúmeros editoriais e artigos a respeito, EUA, França e os demais paises árabes o ignoraram solenemente durante toda a crise (exceto como alvo do ocasional comentário mordaz); o seu enviado à Liga Árabe saiu antecipadamente da última reunião, furioso por não ter nenhuma de suas propostas aceitas para a redação do documento final. Mais ainda, Assad se tornou motivo de piada em pelo menos parte da imprensa árabe (certamente com a concordancia de seus governos respectivos), que não poderia deixar de notar o contraste entre sua retórica beligerante e a calma que reina na fronteira entre Golan e o resto da Síria, initerrupta desde 1974.

Se Assad não tem muita credibilidade atualmente, Nasrallah está se esforçando para manter a sua. Não há nenhum entusiasmo para comemorar a vitória do HA, cuja vacuidade está se tornando cada vez mais obvia. As ufanistas celebrações em frente aos prédios demolidos de Haret Hreik gradualmente baixaram de tom. Nem mesmo entre os xiitas há qualquer apetite para a retomada dos combates; entre os não-xiitas evitar o segundo round da guerra se tornou um imperativo. No momento, o HA precisa se concentrar em manter a promessa de ajudar milhares de seus correligionários a achar onde morar.

As críticas às ações do HA, durante a guerra confinadas à blogosfera, agora começam a aparecer na imprensa e entre a liderança politica libanesa. Os críticos incluem até mesmo um pequeno número de xiitas. Logo após a guerra o HA tentou impor seus limites aos parâmetros do discurso politico. Com ousadia crescente, estes limites tem sido rompidos.

No final das contas, é possível que Nasrallah acabe derrotado, não por algum lider falastrão de algum dos outros sectos (existem vários), ou pelo eternamente confuso PM Olmhert de Israel; mas sim por um político que representa uma novidade ainda maior em termos retóricos: O come-quieto.

O PM libanês, Faud Siniora, também não é dado a grandes arroubos retóricos ou promessas vãs. Mas ao contrário de Nasrallah ele não projeta uma imagem de força, mas sim de fragilidade. É obvio para todos que ele é a parte mais fraca, colocado no meio de várias forças muito mais fortes, e com uma ínfima margem de manobra. Mas a sua posição de fulcro o torna o único capaz de construir um consenso nacional (ninguem, no Líbano ou fora dele, quer o retorno à guerra civil que a quebra deste consenso traria); e a suas opções limitadas dão um ar de inevitabilidade para suas ações. E aquele que constroi o consenso pode, se for sutil o suficiente, molda-lo na direção desejada.

Nenhuma outra pessoa, seja ele GW Bush ou Ehud Olhmert, poderia ter forçado o HA a aceitar a presença do exercito libanes ao sul do Litani, pela primeira vez em décadas, ou a apoiar, mesmo que só da boca para fora, a resoluçao UNSC 1701. O seu judo retórico continua para tornar efetiva a implementação da 1701; o discurso do governo foi mudando gradualmente, de expressões de solidariedade com a resistência logo após o cessar fogo, até promessas de tornar o exercito a única força armada no pais e de reforçar o patrulhamente das fronteiras (com a ajuda de uma UNIFIL que parece estar finalmente se tornando uma força efetiva). Hoje Siniora afirmou que o HA não esta mais em condições de iniciar outra guerra com Israel, e até aventou a possibilidade de um acordo de paz, uma ousadia que seria impensável antes da guerra, e que vai enfurecer Sírios e o HA*. Durante a guerra, Siniora fez com que a liga árabe adotasse seu plano para terminar a guerra. Isso garantiu que seria ele, e não Nasrallah, o interlocutor (por canais indiretos) de Israel em qualquer negociação. Se tiver sucesso, Siniora terá efetivamente roubado do HA os seus principais pretextos para a continuação da luta armada (i.e., prisoneiros e as fazendas de Sheeba). Um acordo de paz a lá Sadat é na prática improvável no futuro próximo, mas pouco a pouco os parâmetros do discurso vem se deslocando, e a margem de manobra que Nasrallah tem para falar e agir em nome de todos os libaneses é cada vez mais restrita.

É impossível dizer qual será o rumo que o Líbano tomará daqui para frente. Mas pelo menos por enquanto, o come-quieto Siniora teve sucesso em puxar o tapete por debaixo do Nasrallah. Este sabe perfeitamente o que aquele pretende, mas assim como Siniora não pode atacar diretamente a legitimidade da resistência, Nasrallah não pode taxar o primeiro ministro de traidor devido a legitimidade que ele adquiriu durante a guerra, dentro e fora do Líbano. É um tipo de xadrez peculiar, onde nenhum dos dois lados pode dar xeque, e todas as jogadas são indiretas.


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* Um acordo de paz deixaria a Síria totalmente isolada como o único vizinho com quem Israel não teria um acordo de paz. Desde que perdeu o apoio sovietico, a politica Síria tem sido evitar o confronto direto e pressionar Israel indiretamente usando aliados e prepostos libaneses. Claro que quem se estrepa com isso são os libaneses, mas isso combina com outra vertente da política síria, que é extender seu controle sobre o Líbano. Quanto ao HA, uma paz com Israel tiraria suas justificativas para se manter como um movimento armado; manter esta prerrogativa foi provavelmente o que motivou Nasrallah a começar a guerra.


UPDATE: Vejam também este artigo de Amir Taheri, um exilado Iraniano que repete o que eu disse acima com muito mais conhecimento de causa. Comentários pertinentes no From Beirut to the Beltway.

3 comentários:

Bruno disse...

Não sei se posso concordar 100% sobre o que você fala sobre Nasrallah. Em alguns momentos durante a guerra, ele ameaçou explodir cada centímetro de Tel Aviv, enquanto a cidade continuava com praias e hotéis lotados de turistas e israelenses. Me soava como mais um desses líderes que "levantam multidões".

Bruno disse...

By the way, peguei emprestado sua piadinha dos "comments" pro meu blog, se é que voce se incomoda...

|3run0 disse...

Bruno, certamente as promessas de 'destruir' Haifa ou TV não se concretizaram (que bom!), e o esperado ataque 'além de além de Haifa' foram um tanto pífios. Mas esses são exageros pequenos comparáveis (prex.) aos anuncios de vitória iminente pelo Egito e a Siria na guerra de 67 (o que alias foi o que convenceu o rei Hussein a entrar na guerra). O fato é que o Nasrallah ainda tem bastante credibilidade na sua base de apoio, que deve se manter enquanto

a) os xiitas continuarem convencidos que o HA ganhou a a guerra; e

b) ele cumprir suas promessas de reconstrução.

E sim, use minhas piadinhas como quiser ;-).