segunda-feira, 23 de março de 2009

Casa, Rio de Janeiro
Deus ex Machina

Pai, filho e espirito santo

Eu não costumo fazer resenhas neste blog (tecnicamente, o que se segue não é exatamente uma resenha, mas é próximo o suficiente para merecer o comentário). Mas ontem (hoje...) fiquei a madrugada inteira baixando e assistindo o último episódio de Battlestar Galactica, a minha série de TV favorita. Muita gente diz que é dificil explicar porque BSG é tão bom. Eu discordo! Diria que o seu apelo vem da combinação de honestidade temática, plausibilidade estética e foco nos personagens, e de evitar os Scylla e Charybdis da alegoria e do niilismo. O dificil é convencer quem nunca a viu que uma série com o tema e pedigree da BSG pode ter estas qualidades. Eu explico...

A nova BSG (iniciada em 2004) é uma iteração de uma série um tanto baranga com o mesmo nome do final dos anos 70*. A premissa é a mesma: humanos habitantes das '12 colonias' são atacados por suas antigas criações cibernéticas, os cylonios. Os sobreviventes fogem em uma frota improvisada, liderados pela titular Galactica, a procura de um lugar mítico chamado 'Terra'. A nova BSG mantém ainda a maior parte dos personagens principais (com ligeiras alterações em alguns casos, tais como o sexo [+ mulheres], incidencia de alcolismo [+ pinguços], gosto musical [- disco fever, + Bob Dylan] e a propensão ao homicidio [+ psicoticos]). Com o tempo a série vai criando uma mitologia original bastante intrincada e interessante.

Ficou mais claro agora?

Lendo o parágrafo acima, mesmo quem nunca viu qualquer uma das duas já deve ter adivinhado que a série nova é um tanto mais sinistra e sombria que a original. De fato, enquanto nesta última os refugiados sofrem um holocausto em um episódio e já estão se engraçando com as locais em um cassino interestelar no seguinte, a série nova explora de forma implacável (e, em alguns casos, bastante original) as implicações do genocidio, e dos concomitantes colapso social, penúria e paranoia (alguns cylonios agora têm aparência humana).

Ao longo de 4 temporadas, BSG manteve esta honestidade temática, ao mesmo tempo em que evitou o terreno pantanoso da alegoria, se tornando assim a melhor abordagem ficcional do espirito pós-11 de setembro. Nas últimas temporadas, a temática foi mudando naturalmente para os elementos de ficção científica intrinsecos da série (o ciclo de criação-conflito-destruição entre humanos e suas criaturas, entre outras coisas).

Ao mesmo tempo, e ao contrário de muitas séries de ficção científica, o foco da série se manteve nos personagens, e não nas tecnicalidades. Os elementos fantásticos, tais como vida artificial e saltos pelo hiperespaço, criam situações novas e interessantes para serem explorados pelos personagens, e não o contrário. Personagens que, no caso, são quase excessivamente humanos: Eles mudam, aprendem e esqueçem, e fazem bobagens e barbaridades inomináveis uns com os outros. Dada a situação em que se encontram, isto implica em uma narrativa bastante sombria. Mas, talvez exatamente porque são tão humanos e falívies, e porque a série evita o niilismo puro e simples, é criada uma empatia real com os personagens. Nos queremos que as coisas se acertem, ao mesmo tempo em que estamos cientes da possibilidade de que elas dêem errado, e sabemos que o Tyrol não vai usar as nasceles de dobra para modular um feixe de tachyons para estabilizar a anomalia espaço-temporal e salvar a situação no último segundo.

Um último ponto: BSG é visualmente linda. Os efeitos especiais e o desenho de produção são competentes, bem aplicados e tematicamente consistentes. Isto pode parecer secundário se o foco é, como eu afirmo, nos personagens e não nas explosões; mas na verdade cumpre um papel fundamental em uma obra de ficção científica, que é estabelecer de forma plausível a existência de um mundo coerente para além do foco da camera. Além disso, só quem tem um coração de pedra ou de silicio é incapaz de apreciar uma batalha espacial bem feita, e BSG tem algumas das melhores cenas do tipo já filmadas (a Galactica caindo na atmosfera de New Caprica...)

Bom, acabei não falando muito do episódio final [SPOOOILERS....] . O Ron Moore, criador da série, explica um pouco as coisas aqui, e boas resenhas podem ser encontradas aqui e aqui. Digo somente isto: Gostei, gostei bastante, e me surpreendi por gostar tanto. Digo isto porque BSG até então só raramente havia apelado para dii ex machinis** para resolver situações espinhosas, e no entanto terminou com a enfática aplicação da expressão, literal e figurativamente. Mas a influencia divina acabou se mostrando surpreendentemente natural. Deus (o Anders?!) e seus anjos (head 6 e head Baltar) mais influenciam do que interveem diretamente nos eventos, e as escolhas feitas por humanos e cylonios continuam sendo o motor principal da estória. Alem disso, a temática religiosa e instâncias desta influencia manifesta já haviam se tornado parte integrante da mitologia da série, de modo que o seu uso final não ficou parecendo (muito) marmelada ou evidência do desespero dos roteiristas (imagine se no último minuto o Arcanjo Gabriel descesse do céu ao som de um coro de querubins e desarmasse a bomba para o Jack Bauer? Ou reconciliasse o Ross e a Rachel?!) Finalmente, através de suas escolhas a respeito do que revelar e do que deixar misterioso***, o episódio final uniu de forma eficiente e satisfatória a mitologia da série e a Mitologia dentro da série. Em retrospecto, a trajetoria da série, e de seus personagens, continuam fazendo sentido, agora inseridas no contexto de tal plano divino de acabar com o ciclo de conflitos. Depois de tanto tempo, os personagens de Galactica, incluindo a própria, mereciam um final que encaixasse (quase) todas as peças soltas, e terminasse em uma nota de otimismo cauteloso. E creio que é isto que tiveram.

PS: O Fernando também escreveu uma quase-resenha (com s, não z :^$ )

PS2: A reação da Casa Branca...

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* BSG2004 não é um clone melhorado de BSG1978. Se tivesse que defini-la de forma genealógica, diria que BSG2004 é o filho mutante de BSG1978 com Star Trek TNG/DS9

** A expressão (romana) significa deus(es) saido(s) da máquina, e se refere ao uso teatral (grego) da intervenção divina (ou, de forma mais geral, de algum elemento de fora da estória) para resolver situações espinhosas. Tradicionalmente os tais deuses eram baixados no palco por um guincho, dai o termo.

*** Fora as questões obvias sobre o panteão Moorico (quem são Deus-que-não-gosta-de-ser-assim-chamado? Starbuck? Head 6, Baltar e o Pianista?), poderiamos nos perguntar como a Starbuck ressucita duas vezes com seu viper (Isto que é piloto...), o que aconteceu com o Anders, e como diabos a nova Terra tem seres humanos. E qual o profundo significado cósmico de 'All along the Watchtower'. São vários os momentos 'What the Frak?!' neste episódio, mas o seu (relativamente reduzido) número e (instigante) qualidade os impedem de arruinar o episódio, e, em retrospecto, a série.

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