terça-feira, 26 de agosto de 2008

Casa, Rio de Janeiro
"Eu não sou padre, pajé, juiz ou profeta..."

"...Sou um físico com interesses ecléticos que ocasionalmente fala de si mesmo na terceira pessoa". Mesmo assim, a Suzana (minha chefe) e o Carlos me pediram para celebrar o casamento deles este último sábado ("para minha enorme honra e eterna perplexidade"). Como gosto muito dos dois, aceitei; mas passei uma semana inteira em silencioso pânico, sem saber o que diabos dizer. Não era o medo de fazer algo de forma errada, era o pavor de não saber nem o que este 'algo' seria exatamente. Aos poucos, fui estruturando minha 'homilia' (é difícil evitar a terminologia tradicional: 'altar', 'congregação', etc.) de modo a responder três perguntas que ao meu ver eram o cerne da questão: 1) O que é casamento; 2) Porque a Suzana e o Carlos resolveram se casar; e 3) Porque sou eu a celebrar o casamento? A medida que as respostas iam se delineando, o texto praticamente se escrevia sozinho. Algumas referências aos habitos matrimoniais no Cáucaso, às noivas masai, ao Douglas Adams e ao Cthulhu depois (bem de leve este último), e alguns minutos após o horário-limite para sair de casa, o 'sermão' estava pronto. Não o reproduzo na íntegra abaixo, mas eis a, digamos, digressão antropológica a respeito dos hábitos matrimoniais mundo afora:

UPDATE: Atendendo aos pedidos, as referências ao Hitchiker's e ao Cthulhu seguem no final do post

Um casamento pode ser um contrato legal; um acordo informal; um sacramento divino, um instrumento de perpetuação dinástica ou um tratado de paz. Pode ser celebrado por religiosos, juizes, burocratas ou líderes tribais. Pode ser acordado entre os cônjuges, ou entre seus familiares ou conterrâneos. Em alguns casos, o casamento é pré-requisito para a procriarão; em Bali, a gravidez é o pré-requisito para o casamento. As vezes, o que precede o quê é objeto de intensa controvérsia.

Na Índia, as mães e sogras selecionam, ou pelo menos sugerem, os futuros casais. No Sahel, as primeiras esposas escolhem as segundas esposas para os maridos. As noivas Masai só encontram seus noivos na cerimônia, enquanto no Nepal jovens crescem conhecendo seus pares desde a infância. No Cáucaso as noivas são cerimonialmente seqüestradas; seus familiares masculinos partem cerimonialmente em vingança; e o casamento ocorre após uma troca igualmente cerimonial de ameaças e a negociação do preço de um dote bastante real. De fato, segundo Tito Lívio a primeira geração de romanos conseguiu suas esposas sequestrando-as de uma tribo vizinha, os Sabinos. A guerra entre maridos e pais enfurecidos só foi evitada quando suas esposas e filhas, carregando seus filhos e netos, se interpuseram entre os beligerantes. Carregar a noiva através do batente da porta era originalmente um símbolo deste rapto primordial.



Só faltava colocar o terno (pela 2a vez na minha vida), e repetir de forma inteligível o que eu havia escrito perante algumas centenas de familiares e amigos dos noivos, que provavelmente se perguntariam porque eu estaria falando de Tito Lívio e 'simetrias sutis'. Mas no final, tudo deu certo. Fiquei calmo, os noivos gostaram, os convidados (aparentemente) gostaram, e eu gostei. Acho que a minha situação era tão inusitada que os mecanismos de pânico pleistocênicos implementados no meu cérebro simplesmente não souberam o que fazer, e decidiram, frustrados, tirar o dia de folga. Foi um casamento bastante pouco ortodoxo (como provavelmente já deduziram meus leitores mais argutos, dada a escolha do celebrante), concebido do começo ao fim pelos noivos, e muito bonito (já mencionei que gosto muito deles?).

UPDATE: A seguida, outro trecho que faz as referências ao Hitchiker's e Cthulhu:
O Universo se organiza em inúmeros padrões instigantes e simetrias sutis. Estes padrões e simetrias, em última instância, pagam o meu aluguel; mas não implicam que o cosmo seja totalmente inteligível. De fato, existe uma teoria segundo a qual se alguém algum dia entender o que é e para que serve o Universo, este ira imediatamente ser destruído, e algo muito mais confuso e ininteligível tomará o seu lugar. A quem diga que isto já aconteceu. Eu não sei como exatamente Deus, o Universo, o grande Cthulhu ou a Mãe Natureza querem que as coisas aconteçam. Mas eu sei o seguinte: Por mais incompreensível e ocasionalmente hostil que seja o Universo, nós criaturinhas dentro dele temos escolhas. Viver ou não viver, abrir ou fechar os olhos, ir para frente ou ficar parado no escuro. Nós estamos aqui hoje porque estas duas pessoas resolveram dar este passo. Elas decidiram, livremente e de acordo com sua própria consciência, que são uma benção um para o outro; que querem estar juntos, e ficar juntos, e juntos aproveitar e enfrentar o que a vida tiver a oferecer. Esta não é a escolha de duas famílias ou tribos, ou a imposição de algum Deus impessoal. É a escolha de dois indivíduos que se amam, e que escolheram celebrar este amor na companhia de seus pais, filhos, familiares e amigos. Olhem em volta. Vocês verão pessoas de todo o tipo, idades e opiniões. Mas além da nossa humanidade compartilhada, o que nos une é que todos nós gostamos imensamente da Suzana e do Carlos. Nós queremos que eles sejam felizes, e nos queremos vê-los felizes. É por isto que estamos aqui.

Eu não sou padre, pajé, juiz ou profeta. Sou um físico com interesses ecléticos que ocasionalmente fala de si mesmo na terceira pessoa. Carlos e Suzana me escolheram para celebrar este casamento, para minha enorme honra e eterna perplexidade. Mas acima de tudo, eu sou amigo. De ambos. Gosto deles por mais razões do que tenho tempo de enumerar. Eu fico feliz porque eles estão felizes. E é por isto que eu estou aqui.

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