quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Aeroporto JFK, Nova York
Jeitinho Deliano

Estou na fila para embarcar no vôo de volta para o Rio. Fiz conexão em NY, mas não tive tempo de dar um pulinho na cidade, o que é uma pena.

Hoje fui acordado muito cedo pelo Anthony para desocuparmos o apartamento dele. Carregamos o futon e estrado até o apartamento novo, e fui devolver a bicicleta do Matthew. Fui então para Roslyn, onde passa o (leento) ônibus para o aeroporto Dulles. Esperando pelo ônibus, eis que surge um taxi um tanto surrado (um prius híbrido), de cuja janela emerge uma cabeça que, em um forte sotaque indiano, anuncia uma corrida sem taxímetro para Dulles por US$ 60. "Só tenho US40, respondi". Já no taxi, descobri que só tinha na verdade US$31 (havia esquecido do preço do café da manhã). Sem problemas, diz o intrepido nativo de Nova Deli (como fiquei a saber depois). Fazemos qualquer negócio. Na hora já me senti de volta ao Rio! O cara mora perto do aeroporto, e assim aproveitava para ir tomar café (e sabe-se mais o que) com a patroa em casa. No final da corrida, ele começou a insistir, dizendo que eu devia ter mais dinheiro em algum lugar. Não, eu não tenho, respondi; algumas iterações deste diálogo depois, mostrei para ele o interior da minha carteira (eu tinha US$ 6 dolares, trocados para o ônibus, no bolso. Mas tenha dó...). Disse para ele que tinha algumas moedas brasileiras, porém. Desta forma, 20 minutos e US$31 e R$1,25 depois, eu já estava no aeroporto, com tempo para matar.

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quarta-feira, 16 de novembro de 2011

SfN 2011, Washington DC
Cidade mitológica


 Pelo fato de ser sede do governo federal e de uma profusão de agências, organizações, universidades e think thanks de todos os tipos, Washington DC não tem as comunidades históricas e idiosicrasias locais que tanto distinguem partes do Rio ou de Nova York. O fato é que muito da população local é transiente, sem raizes locais mais profundas. Não chega perto do artificialismo de Brasilia, mas é algo que vai se tornando mais e mais notável a medida em que vou andando pela cidade. Isto não torna a cidade desagradável, certamente. As ruas são simpáticas e bem cuidadas, as folhas nas arvores assumem tons outonais interessantes, e a arquitetura local é apropriadamente grandiosa; mas é difícil apontar alguma característica ou maneirismo tipicamente local. Para bem ou para mal, o charme de DC é federal; por aqui a historia americana assume tons mitológicos: Mais do que uma sequencia de eventos e um conjunto de reliquias, ela se torna uma meta-narrativa que explica e organiza moralmente (com os inevitáveis, mas no caso até bastante variados, filtros ideológicos)  o mundo atual. Isto se torna claro na obsessiva preservação de artefatos históricos no national archives*, nos memoriais a presidentes e guerras vários, reverentemente visitados, na presença ubíqua (irônica ou não, crítica ou não) da história republicana na arte local, e até no discurso dos ocupantes do Occupy DC.


"We the People of the United States, in Order to form a more perfect Union, establish Justice, insure domestic Tranquility, provide for the common defence, promote the general Welfare, and secure the Blessings of Liberty to ourselves and our Posterity, do ordain and establish this Constitution for the United States of America."

Falei pouco sobre o Neuroscience aqui porque não há grandes diferenças em relação aos anteriores. Atualmente uma chuve de *&^#*&^#  me impede de fazer o meu passeio, a tanto tempo adiado, até Mount Vernon. Como a chuva dá sinais de trégua, vou dar uma saida. Depois escrevo mais.
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*  E.g., a sala de emergencia onde Kennedy morreu foi transplantada de Dallas e totalmente reconstruida aqui; a declaração de independência é preservada em uma capsula a prova de bombas atômicas, e a (enorme) bandeira original que inspirou o hino nacional americano é enclausurada em uma sarcófago transparente hermeticamente selado e preenchido com argônio. Incidentalmente, até o começo do seculo 20 era comum presidentes presentearem dignatários visitantes com pequenos retalhos da tal bandeira, cortados pessoalmente; devido a esta prática bizarra, hoje vemos um canto inteiro que parece roido por traças. Hoje ela está protegida contra traças e políticos.

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sábado, 12 de novembro de 2011

Mount Vernon Convention Center, Washington DC
Save Ferris

Eu conheci o Anthony quando vim para o SfN em Washington pela primeira vez, a 3 anos atrás. Eu precisava de um lugar para ficar, e enviei meio a esmo um pedido para me hospedar na casa dele logo após criar uma conta no Couch Surfing.

Eu não tinha referências, amigos ou histórico no site, mas por qualquer razão ele aceitou o meu pedido. Ficamos amigos, e neste ano ele veio (foi...) ao Rio, onde eu organizei um coloquio no qual ele ensinou os rudimentos da linguagem de programação R para o povo da biologia. Quando mencionei que iria novamente à Washington para outro congresso, ele me convidou novamente para ficar na casa dele. Novamente, eu aceitei.

O Anthony acaba de comprar um apartamento. O que significa que seu apartamento antigo (alugado) está vago até o final do mes. Estava, porque estou lá instalado, a dois quarteirões do centro de convenção. Nada de um sofá na sala de outrém: Tenho o apartamento só para mim.

No dia em que cheguei, o Anthony também me convidou para jantar na sua nova casa. Conheci lá um colega dele chamado Matthew. Ao ouvir eu mencionar casualmente os meus hábitos ciclísticos, ele prontamente ofereceu sua bicicleta reserva, para eu usar enquanto estivesse aqui. Claro! Fui pegar a bicicleta no dia seguinta, e fiquei sabendo que a sua namorada estava dando uma festa celebrando a chegada de sua nova roomate. Eu não gostaria de ir? Fui, e encontrei diversas pessoas simpáticas e interessantes. Terminei a noite em uma profunda discussão sobre o significado epistemológico das coincidências para a teoria da evolução de Darwin.

Entre apartamentos, bicicletas, jantares e festas, estou com uma sensação um tanto Ferris Bulleresca, com pessoas que vou encontrando fortuitamente tornando a minha vida mais facil e confortável espontaneamente, sem nenhum esforço significativo (ou mesmo pedido) da minha parte. Acho que poderia me acostoumar com isto...

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sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Embassy Row Hotel, Washington DC
O número 1 é o sucessor do número 0!

Hoje, as 11:11 do dia 11/11/11, a unicidade do número 1 será comemorada com a leitura dos axiomas de Peano sob a sombra do monumento a Washington.



  • 1. Existe um número natural 0;
  • 2. Todo número n tem um sucessor n' no conjunto dos números naturais (\mathbb{N})
  • 3. Não existe nenhum número natural que tenha como sucessor o número 0;
  • 4. Se n e m forem números naturais, e se n'=m' então n=m ;
  • 5. Se 0 tem uma propriedade e esta propriedade também é possuida pelo sucessor de todos os números naturais que a possuem, então ela é possuída por todos os números naturais.

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quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Aeroporto Intercontinental (!) George W. Bush, Houston
I love the smell of high fructose corn syrup in the morning

Não sou o primeiro a observar isto, mas o aparato de segurança aérea nos EUA parece considerar o bom senso elementar como uma ameaça mais grave que a Al Qaeda. Entre apalpadelas e raios-x, comentários jocosos e piadas são recebidos não exatamente como hostilidade, mas com a incompreensão impaciente de quem não parece estar familizarizado com o conceito de 'humor'. Alias, o alto-falante repete a cada 2 minutos que piadas sobre a segurança podem levar a prisão do piadista. Suponho que representem uma ameaça clara e imediata à auto-estima dos funcionários. De qualquer forma, talvez seja prudente eu ficar calado.

Fora da área de segurança, a convivencia é mais natural. De fato, impressiona a disposição de americanos randômicos de entabular conversas amigáveis com completos estranhos. É algo que eles têm em comum com nos brasileiros, e que nos distingue ambos da maior parte dos europeus.

PS: Eu poderia saber que estou nos EUA só pelo gosto da Coca Cola. É o tal HFCS usado aqui como substituto (piorado) de açucar de verdade. Uma consequencia dos subsidios agricolas locais, capaz de induzir em mim arroubos agudos de neoliberalismo anti-protecionista.

UPDATE: No avião agora. A Continental me deu um upgrade, então tenho que escolher entre um omelete de cogumelos e cereal. Não tenho certeza, mas talvez esta seja a primeira refeição decente em um avião que terei nos EUA.

UPDATE2: Ué, até que foi bom este café da manhã aéreo. Comi o tal omelete de cogumelo, alguma coisa feita de batata e creme de espinafre bastante respeitável, presunto grelhado, mini-hamburguer, salada de fruta, iogurte e um bagel. Café e suco de laranja de verdade servidos em copos de verdade. Por mais que meus instintos demóticos protestem, não tenho muita vontade de regressar a hói poloi da classe econômica...

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terça-feira, 8 de novembro de 2011

Aeroporto do Galeão, Rio de Janeiro

Estou a caminho de Washington, DC, para mais um neuroscience. Não posso escrever muito, porque a Continental está chamando os assentos em ordem decrescente, e o meu está no próximo grupo. Para variar, até que a fila formada não foi uma vergonha nacional. Em Houston escrevo mais.

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sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Sala dos Profs. 1BR2 e Pará, UFSJ/CAP, Ouro Branco
Neurônios, círculos no céu e zumbinos

O campus do Alto Paraopeba da UFSJ é um agradável prédio de 2 1/2 andares em uma colina de onde se descortina panoramicamente a serra de Ouro Branco e redondezas. O seu departamento de física, por outro lado, é populado por uma turba desinibidamente insana de nerds talentosos, muitos dos quais são meus ex-colegas de UFMG. Estou aqui, desde ontem de manhã e até hoje a noite para dar duas palestras: A primeira sobre o meu trabalho em neurociência e a segunda sobre o meu trabalho com cosmologia. Um conjunto eclético de temas, eu diria, onde eu era ora um cosmólogo falando sobre neurônios, ora um psquisador em um laboratório de neuroanatomia comparada discutindo topologia cósmica. Mas entre uma e outra palestra, acabamos discutindo também o meu modelo de dinâmica populacional de zumbis, e postulamos a existência do zumbino, o parceiro supersimétrico do zumbi, necessário para que os diagramas de Feynmann das interações humanos-zumbis façam sentido*. Um dia produtivo...

Como já afirmei anteriormente, passar tempo com meus colegas físicos é como voltar para casa, em vários aspectos. Pessoalmente, é muito bom cozinhar, brincar com os filhos e explorar a natureza local com meus amigos. Cientificamente, por mais confortável que eu me sinta entre os biólogos, sou culturalmente, por inclinação e por formação, um físico, e é com eles que me comunico na minha lingua científica materna.

De fato, somos uma profissão um tanto hermética, e isto leva a um certo tribalismo exarcebado. Suponho que a minha sensação quase instantânea de conforto quando estou de volta ao convívio com minha tribo esteja em proporção direta com o desconforto, ou pelo menos estranheza, sentidos por quem com ela convive sem fazer dela parte. Não me refiro somente a barreiras culturais obvias, com as inúmeras piadas de Heisenberg ou as reminicências sobre antigos professores; penso também na nossa capacidade emendar todo tipo de assunto em uma conversa usando os ganchos mais estapafúrdios como tecido conjuntivo retórico, ou o nosso talento para improvisar modelos qualtitativos, em conversas de botequim ou assemelhadas, sobre qualquer que seja o objeto do nosso interesse no momento: da formação de costelas em estradas de terra à dinâmica auto-emergente dos garçons. Nos pensamos de forma diferente da maior parte das pessoas, e temos orgulho disso.

De qualquer forma, pretendo voltar. Ainda temos muito o que discutir a respeito dos zumbis, e também quero subir a serra de Ouro Branco de bicicleta.



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* O modelo em questão é clássico, mas caminhamos na direção de uma quantização...

PS: Abaixo, os resumos dos seminários




Como construir um cérebro: Alometria, leis de escala e universalidade em cérebros de mamíferos
Bruno Coelho César Mota
Laboratório de Neuroanatomia Comparada – ICB/UFRJ

Cérebros, humanos ou não, são provavelmente as estruturas mais complexas conhecidas. Mesmo se nos restringirmos somente aos mamíferos, encontramos cérebros cuja massa varia entre alguns décimos de gramas até vários quilogramas, regendo o comportamento de uma enorme variedade de animais com histórias evolutivas, habitats e dietas radicalmente divergentes. Mas todos estes cérebros compartilham a mesma bioquímica, e são compostos pelos mesmos tipos de células organizadas em estruturas fisiológicas substancialmente análogas. Desta forma, cabe a pergunta: Existem regras universais quantitativas que descrevem a estrutura cerebral entre as várias espécies? Qual é a abrangência destas regras, e qual é a sua forma matemática? Afinal, de quantos graus de liberdade a seleção natural dispõe para moldar cérebro de cada espécie às suas circunstâncias únicas? O cérebro humano é único de alguma forma, ou é o que esperariamos encontrar na cabeça de um primata com a nossa massa corporal e dieta?

Eu sou um físico por formação, e trabalho atualmente no Laboratório de Neuroanatomia Comparada do ICB/UFRJ. Eu e meus colegas biólogos procuramos verificar a existência de tais regras baseados nos dados experimentais obtidos no próprio laboratório. Queremos usar técnicas e métodos desenvolvidos originalmente para as ciências exatas para entender a origem destas regras de escala biológicas, e usa-las para tentar explicar um pouco sobre o funcionalmento, desenvolvimento e evolução do cérebro.

Neste seminário, pretendo mostrar que as relações matemáticas observadas quando comparamos as várias quantidades mensuráveis nos cérebros de diferentes mamíferos (número de neurônios, massa, áreas superficial), válidas separadamente para cada ordem (e.g. primatas e roedores) e estrutura analisada, tomam uma forma matemática bem específica, chamada lei de potência, por razões que podemos obter de forma simples a partir de primeiros princípios. Tais relações entre quantidades conhecidas podem ser usadas, lançando mão de algumas hipóteses simples e biologicamente plausíveis, para derivar as relações equivalentes entre quantidades que não somos capazes de medir diretamente (e.g. o comprimento e calibre médios dos axônios, as fibras neuronais que enviam sinais para outros neurônios). Tomadas em conjunto, todas estas regras de escala explicam grande parte da variabilidade observada entre os diferentes cérebros, e sugerem uma explicação para as variações no grau de convolução das superfícies de córtices cerebrais. Finalmente, veremos que, a partir das regras de escala a princípio diferentes aplicáveis a diferentes ordens e estruturas, podemos deduzir a existência de uma quase invariância no tamanho celular médio e fração de massa correspondentes às células não neuronais, que parece ser universal na construção de cérebros mamíferos. Usamos esta universalidade para calcular, pela primeira vez até onde sabemos a massa média dos neurônios para os cortices e demais estruturas de todas as espécies que estudamos.

A forma (local) do Universo: Detecção e detectabilidade da topologia cósmica e a procura pelos círculos no céu.
Bruno Coelho César Mota
NACO - ICB/UFRJ

Nas últimas décadas, a cosmologia baseada na hipótese de um Big Bang quente com sua dinâmica dada pela teoria da relatividade geral tem sido extremamente bem-sucedida em explicar precisamente uma grande quantidade de observações. O surgimento da chamada cosmologia de precisão, em particular a observação das anisotropias da radiação cósmica de fundo, só fez confirmar os fundamentos deste modelo, com uma acuidade sem precedentes. Mas isto não é suficiente para determinar completamente a forma do Universo. A  relatividade geral  é um teoria local, que especifica localmente a geometria do espaço-tempo, e não determina (embora restrinja) a topologia do espaço. Supondo homogeniedade e isotropia espaciais (locais), a geometria das sessões espaciais do Universo (i.e., folheamentos para tempo comóvel constante) em grandes escalas é totalmente caracterizada por uma curvatura gaussiana constante, cujo valor e sinal depende da densidade média de matéria-energia. Mas, seja para curvatura positiva, negativa ou nula, existe uma infinidade de 3-variedades com diferentes topologias permissíveis, só uma das quais em cada caso é simplesmente conexa. Como não existe atualmente uma teoria bem aceita que  determine qual a topologia do espaço, esta portanto só pode ser determinada experimentalmente. Pretendo mostrar inicialmente que, embora haja um grande variedade de topologias possíveis, no casos de um Universo pós-inflacionário, mais fovorecido atualmente por razões teóricas e observacionais, a forma local do Universo, i.e. os elementos da topologia que podem efetivamente ser detectados, são em quase todos os casos surpreendentemente mais restritos.

A consequencia mais direta de uma topologia não trivial para as sessões espacias do Universo é a existência de classes de geodésicas fechadas do tipo espaço; essencialmente há mais de uma maneira de se voltar ao mesmo lugar. Isto implica na existencia de imagens múltiplas de objetos cósmicos, a luz advinda dos quais pode ser então detectada de vinda de direções diferentes. Como a caracterização destas classes (o grupo de holonomia) é suficiente, para as 3-variedades de curvatura constante em questão, para caracterizar totalmente sua topologia, então a busca pela topologia cósmica é equivalente a procura por imagens múltiplas de objetos cósmicos. Vou apresentar o método atualmente mais promissor para efetuar esta busca de forma sistemática, os chamados círculos no céu, que procura por pares de círculos de anisotropias correlacionadas na radiação cósmica de fundo. Mostrarei como os resultados referentes a forma local do Universo e a caracterização dos grupos de holonomias das variedades planas podem ser usados para efetuar tal busca de forma mais eficiente, e como interpretar os seus resultados.

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terça-feira, 20 de setembro de 2011

Casa, Rio de Janeiro
Cérebros novos e usados



Fui convidado para dar uma palestra sobre o Cérebro. Nenhum problema com o tema; sou físico, não biólogo, mas acho que tenho coisas relevantes para dizer sobre o assunto. Mas como falar sobre o cérebro para uma turma de crianças de 5 a 6 anos? Em menos de meia hora, devo acrecentar, pois este é o tempo máximo que plausivelmente eu conseguiria manter a atenção deles.

Foi o que fui descobrir hoje de manhã, na escola do Gabriel. No final das contas, eu não precisava me preocupar tanto; foi uma audiencia mais interessada e participativa que a de muitas plateias nominalmente adultas. Uma aluna queria saber porque as sensações tem que todas passar pela medula, outro sabia os nomes dos ossinhos do ouvido interno, e um terceiro queria que eu mostrasse no modelo de plástico que levei onde ficava a substância cinzenta... O Gabriel não parava quieto, e era um dos que mais perguntava e comentava, com uma misturo de orgulho filial e ansiedade para se comunicar que lhe é bem característica.


Hoje a noite cheguei em casa e me deparei com um cartão de agradecimento e um maço de papeis onde as crianças desenharam o que haviam entendido da palestra (a professora anota, embaixo, a descrição nas palavras dos autores). Nem menciono o chocolate que ganhei deles mais cedo. Uma palestra muito bem remunerada, eu diria.

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sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Van do Senhor Volante, Rio de Janeiro
Road rage



Andar de van no Rio de Janeiro pode ser cansativo e demorado, mas raramente é entediante. Digo isto por experiência própria, já que estou dentro de uma as 19:20 da noite, em um engarrafamente que se estende para dentro da universidade. Ao que parece uma carreta virou na linha vermelha.

Existem somente duas saidas para carros do fundão, mas as maneiras de chegar até elas só são limitadas pela criatividade do motorista. O meu atual condutor resolveu passar em frente ao quartel dos bombeiros e avançar celerado pela contra-mão até a saida do Hospital Universitário, confiando na aplicação generosa de sua buzina para limpar o caminho a frente. Buzina que alias é dotada de um sintetizador de voz, e emite frases simpáticas como ´Sai da frente!´ e ´Ô coisa feia!´.

Saindo finalmente pelo portão, seguimos inicialmente rumo à Ilha do Governador, saltamos por cima do canteiro que divide as pistas, e estamos agora a caminho de ´Laranjeiras, prefeitura, Copacabana´, como afirma o sempre prestativo sintetizador de voz da van.

Como um exemplo do emprendedorismo informal local, as vans são tão variadas quanto os cariocas. Algumas são geridas como uma operação de guerra, se movendo taticamente para ficar logo a frente dos ônibus e pegar os pontos cheios; e se coordenando por Nextel para evitar blitzes e encontrar caminhos menos congestionados. Outras tem um clima mais relaxado, com motoristas loquazes seguindo uma rota que vai sendo negociada em tempo real com os passageiros. E existem aquelas que bem poderiam ser versões do Pecquod em quatro rodas, com um Ahab taciturno na direção imbuido de uma pressa monomaníaca (para chegar mais cedo no seu encontro fatídico com uma baleia branca, suponho), e que claramente toma a presença dos demais carros na pista como um insulto pessoal.


Não digo isto para dar a entender que os ônibus aqui são tranquilos e previsíveis. Os motoristas do 485 (Pça. General Osório - Fundão - Penha) dirigem como candidatos a peões de rodeio, são notoriamente criativos na escolha das rotas, e tem como lema o altivo brado ´ALGUÉM VAI FICAR NO CATUMBI?!´. Mas só em uma van carioca é possível encontrar um aviso que diz

"Se você sentir um rato ou barata subindo na sua perna, não entre em pânico. Ele está ai devido aos restos de comida que você deixou cair no chão"

PS: Cheguei em casa. A vantagem da demora no trânsito foi que consegui escrever quase o post todo sem distrações.

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sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Hotel Tivoli Oriente, Lisboa
Tauromaquia televisiva

Estou agora assistindo uma tourada portuguesa na televisão. Por mais carnivoro que eu seja, eu não gosto da ideia de torturar um animal até a morte como forma de entretenimento. Mas a tourada portuguesa parece ser um pouco diferente da espanhola. As roupas são menos espalhafatosas, e, evitando o crochê colante em cores berrantes dos espanhois, o toureiro luso se veste como um figurante manuelino em uma versão de ´O Conde de Monte-Cristo´. Ao entrar na arena, a cavalo e anunciado por um corneteiro, ele inicialmente declama algumas amabilidades para um rapariga vestida a carater cuja função exata me escapa, mas que parece ser mais que meramente decorativa. Ele então começa a picar o touro, ainda a cavalo, com bandeirolas coloridas dotadas de um espeto de metal na ponta. E, tenho que dizer, cavalo e cavaleiro são excepcionais. O cavalo anda de frente, de lado, de costas. Trota até o touro e sapateia em sua volta, até que este último, completamente confuso e com um número crecente de bandeirolas fincadas nas costas, parte em fútil perseguição. O toureiro controla as redeas com uma das mãos (a outra segura a bandeirola), enquanto vai produzindo ruidos um tanto guturais na garganta; não sei se para irritar o touro ou orientar o cavalo.

Depois que o touro foi suficientemente espetado, entrou na arena um grupo de homens com uniformes marrom-ocre. Inicialmente não entendi bem o que pretendiam. Eles se aproximavam do touro cuidadosamente, desarmados, mas rapidamente saltavam o alambrado se este demonstrava um pouco mais de entusiasmo. Aos poucos, manobraram o bovino até um extremo da arena, enquanto formavam uma fila indiana no lado diametralmente oposto. O primeiro homem da fila (e mais próximo do touro) sacou e vestiu então um gorro verde que deve ter ganhado em algum estágio na oficina do papai noel, e começou a gritar TOIROTOIRTOTOIROTOIRO. O toiro, vendo finalmente humanos sem instrumentos pontiagudos, capas ou meios de fuga equinos, resolve sem muita dificuldade brincar de boliche humano, e arremete na direção do grupo. O homem do gorro verde então salta *para cima do animal* e agarra os chifres , enquanto seus colegas se empilham a sua volta e um deles segura o rabo. O objetivo, parece, é imobilizar o touro usando somente a força humana e doses maciças de insensatez. Ao contrário dos toureiros, que são profissionais, estes grupos de agarra-bois são amadores. O primeiro que assisti precisou de quatro tentativas para imobilizar o bicho. A cada tentativa, o homem do gorro era jogado ao solo, e ia ficando mais estropiado e com a roupa mais amassada. Eventualmente, já sangrando profusmente, conseguiu de alguma forma se manter estatelado sobre a testa do touro por tempo suficiente para que seus colegas o imobilizassem. Por mais maluco que seja este passatempo, pelo menos o únicos que podem se machucar são aqueles que escolheram correr o risco, e não o pobre touro que não tem a menor ideia do que está acontecendo.

No final das contas, os touros foram picados, agarrados e imobilizados, mas não mortos (pelo menos não em frente às cameras; se viraram churrasco depois eu não posso dizer). Não sei se esta é uma peculiaridade de todas as touradas portuguesas, mas isto certamente tornou esta tourada que acabou mais facil de assistir que as açouguices dos espanhois.

PS: O último toureiro espetou duas bandeirolas simultneamente no touro, um com cada mão, enquanto controlava o cavalo com o joelhos. Impressionante.

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sexta-feira, 22 de julho de 2011

Hotel Fawlty Towers, Roma
Renewed shall be the bike that was broken

Existem certos hábitos e costumes, peculiares a certos paises, que são altamente civiliziados, mas que passam desapercebidos até nos darmos conta da sua ausência. Por exemplo:

  • Completes estranhos compartilhando refeições comunais em trens russos.
  • Bocais de ar comprimido disponíveis gratuitamente em quase todos os postos brasileiros (isto faz uma falta enorme por aqui, e em outros lugares por onde andei de bicicleta).
  • Fontes de agua potável em cada praça ou logradouro público significativo na Itália. Tradição até um pouco surpreendente, considerando o comercialismo um tanto crasso que existe aqui procurando extrair cada último centavo turistico do patrimonio histórico local. Mas, de qualquer forma, uma tradição muito bem vinda.

Estou em Roma, onde durmo uma única noite antes de embarcar para Portugal, onde encontrarei a minha família para um tour automtivo por Portugal e Espanha ocidental. A articulação do guidom da minha bicicleta se rompeu em estágios, começando a bamber na troca de ônibus em Colle Val d´Este e se abrindo definitavamente na saida da estação de trem aqui em Roma. Fico muito agradecido pela bicicleta ter esperado até agora para enguiçar; na Toscana isto teria sido catastrófico; aqui é meramente um estorvo. Inicialmente, achei um hotel ao lado da estação (e não o planejado albergue em Transtevere). São vários, as vezes uns em cima dos outros. Escolhi o Fawlty Towers só pelo nome; um hotel homônimo com uma série com o John Cleese tem que ser interessante. Fui então procurar uma loja de bicicletas para efetuar um reparo, sem sucesso. Finalmente, passando casualmente por uma ruela atrás de universidade, encontrei um galpão com pilhas de mesas e cadeiras quase até o teto. Dois italianos, devidamente motivados por fotos de mulheres peladas coladas nas paredes, trabalhavam na articulação de uma daquelas mesas usadas em casamentos ao ar livre, o que parecia ser o mote da oficina.

Entrei, sem muias esperanças, e perguntei a um deles em portuliano se eles teriam alguma peça para remendar a articulação (um retângulo de metal torcido na forma de U, com buracos para dois parafusos). Recebi em resposta uma longa, mas aparentemente amigavel, digressão em incomprensivel italiano, sobre a natureza intrínseca de retângulos metálicos e os imperativos categóricos associados aos parafusos que os transpassam (ou algo assim). Balbuciei algo vago em tons encorajadores em resposta. Ele então chamou o colega, e os dois começaram uma animada discussão, após a qual desapareceram momentaneamente nos fundos da oficina, de onde emergiram com diversas pedaços de metal, ainda em animado debate. Passei a meia hora seguinte assistindo a fabricação artesanal da tal peça, com furadeiras furando, serras serrando, italianos discutindo e gesticulando, e muitas marteladas sobre um formão. Eles não me cobraram nada, e após alguns ajustes sai pedalando do galpão. Os elfos em Rivendell não fizeram um melhor trabalho com a Anduril...
A peça nova era só um remendo, obviamente, mas foi suficiente para que eu visitasse boa parte de Roma pedalando. A vantagem de estar por aqui é que eu sei o suficiente sobre a geografia local antiga para me orientar minimamente no presente (e.g., depois do morro Palantino deve estar o circo máximo, com o Aventino do outro lado, etc.). Agora estou no hotel, de molho. Amanhã preciso aprender a dizer ´plastico-bolha´ em italiano...

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Ponto de ônibus, Colle Val d´Elsa
Como ser persuasivo sem elevar a voz

Estou me sentindo perigoso... Hoje, para variar, demorei para acordar, corri para arrumar as minhas coisas e pedalei furiosamente até a estação de ônibus, sobressaltando diversos pombos e transeuntes ocasionais. Acabei chegando quase meia hora antes do horário de partida do ônibus que faria o primeiro trecho do meu périplo até Lisboa (Volterra -> Colle Val d´Elsa), o que me permitiu tomar um café com leite (o leite daqui é muito bom!) rápido e escrever o último e apressado post. Mas entrei no ônibus ainda com fome...

Alguns minutos depois, em alguma cidade perdida no meio da Toscana, o ônibus para, e nele subiu um adolecente que provavelmente é a fonte do verbete ´revoltado´ na wikipedia: Gel de cabelo suficiente para paralisar um urso, headphones descomunhais ligados em um ipod com capa púrpura, e uma cara de ´life is pain´ de dar pena. Ele estava ouvindo algum tipo de música techno repetitiva que parecia ser gerado por uma daquelas maquininhas de Tetris vendidas por camelôs, em um volume alto o suficiente para incomodar, sentado como estava na janela oposta a minha. Não querendo ter uma cansativa discussão em uma língua que eu não falo (´por faviore pogna echo catzo musica un picolo ma piano´?!) com um idiota que provavelmente já estava meio surdo, eu simplesmente liguei o meu próprio ipod, em um volume mais civilizado e com uma música melhor.

Meia hora depois, a fome apertava. Tirei então da mala o meu saco de mantimentos: pecorino curado, linguiça de javali, creme de tartufo e um pão que havia emprestado do restaurante em que jantara na noite anterior. Abri então meu canivete, com a intenção de fazer o que geralmente faço com um canivete: cortar o queijo, fatiar a linguiça e passar creme de tartufo no pão, etc. Mas o meu co-viajante imediatamente olhou para mim, olhou para o canivete (que, admito, tem uma lâmina um tanto ameaçadora), olhou para mim novamente, e rapidamente abaixou o volume do seu ipod e adquiriu um súbito interesse pela paisagem que passava. Comi o meu lanche em bem-vindo silêncio.

Juro que não era esta a minha intenção, mas foi uma maneira efetiva de impor civilidade...

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Bar Enjoy! Cafe, Volterra
Em conexão

Muito rapidamente, porque meu onibus sai em 19 minutos. Volterra é minha cidade Toscana favorita! Antiga cidade Etrusca, sem as hordas de turistas e quinquilharias made in China de San Gimigliano, cidade murada com uma vista fenomenal de toda a Etrúria...

Estou no wifi de um café aqui Volterra, onde cheguei de bicicleta vindo de San Gimignano. Foram dois morros mais sérios (incluindo aquele onde se situa Volterra), mas foi um trajeto mais curto e menos cansativo que Florença-Siena.

Devo chegar a Florença em tempo hábil para coletar minha mochila e pegar o trem para Roma, de onde vôo para Lisboa. Subo as fotos quando estiver com menos pressa. Alias, o motorista do meu ônibus terminou seu cigarro.

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quarta-feira, 20 de julho de 2011

Hotel Antico Pozo, San Gimignano
Selvagem de bicicleta

Estou em San Giminano, uma cidade em uma colina, onde as casas nobres construiram diversas torres, inicialmente como proteção contra invasores e bandoleiros, e, depois que as muralhas foram construidas, umas contra as outras. Atualmente, ela parece uma mini Manhattan feita de tijolo. O lugar fica lotado de turistas e vendedores de quiquilharias, então achei melhor passar o dia em Siena (fotos aqui), e chegar aqui pouco antes do enterdecer, quando as lojas de souvenirs made in China fecham, e os turistas vão (na sua maioria) embora. A parte intramuros é vedada a carros, pouca gente está aparentemente disposta a andar de bicicleta em uma cidade onde a maior parte das ruas são barrancos semi-domesticados. Então eu me sinto meio que como um vândalo no (quase) único meio de transpote sobre rodas das cidade, em meio aos pedestres.

Como em todo o resto do meu tour toscano, não fiz reserva de hotel, porque queria ter a flexibilidade de mudar a minha rota se nescessário/desejável. A vantagem de chegar em um hotel sem reservas as 9 da noite é que (supondo a existencia de algum quarto vago) ou eles te dão o quarto, ou ele fica vazio. Foi assim que eu consegui um quarto duplo em San Gimigniano pela metade do preço na alta estação. Hotel simpático, mais arrumadinho que o usual nestas minhas viagens.

Amanhã pedalo até Volterra, uma cidade que existe desde os tempos estruscos (quando era de fato maior do que é hoje). É relativamente perto, mas o caminho é bastante montanhoso. Não ajuda o fato os Italianos para quem mencionei este plano aqui em San Gimignano me olham com aquele olhar entre a pena e a incredulidade reservado par os insanos. De qualquer forma, espero que minhas pernas aguentem; estou ficando realmente cansado nesta viagem. Mas, até agora, tem valido muito a pena.

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terça-feira, 19 de julho de 2011

Hotel Alma Domus, Siena
Para cima você está por sua conta


As demais fotos da viagem, aqui.

Hoje fui de bicicleta de Florença até Siena, passando pela região de Chianti. Estou moido demais para escrever mais a respeito, e minhas pernas parecem geleia; mas as fotos estão no flickr. Um dia interessante...

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sexta-feira, 15 de julho de 2011

Antico Spedale del Bigallo, Florença
Para baixo todo santo ajuda



"De bicicleta?! Você pode até descer até Florença de bicicleta, mas subir é complicado.." -- me disse o administrador da Spendale del Bigallo, a hospedaria onde estou, quando mencionei meus planos por email. Tudo bem que o site afirma que ´ciclistas são bem-vindos´, então a idea de ir e voltar na minha bicicleta dobrável não era de todo impensável. Mas não foi exatamnte um comentário encorajador.

O Bigallo é uma colina na trilha de peregrinos que vai até Roma (e que, para o norte, descamba em Canterbury) . A antiga hospedaria dos romeiros eventualmente se tornou um mosteiro, e é agora uma albergue extremamente simpático. Com uma vista panorâmica da cidade, ele ainda conserva a atmosfera contemplativa original, apesar das interrupções cacofônicas de algumas turistas alemãs bêbadas que estão neste momento cantando no jardim. Na cozinha, tudo é superlativo. Enormes pias de pedra ao lado de uma lareira do tamanho de um pequeno quarto (no inverno, é possível acender o fogo em um dos cantos e e aquecer em um banquinho colocado lá dentro). Além disso, eu já disse que ele fica em cima um morro?


Eu cheguei em Florença duas noites atras, depois de passar o dia inteiro andando em Roma. Fui de taxi para o Bigallo, com a bicicleta na mala. No dia seguinte, subi na dita cuja e sai na direção de Florença (i.e., para baixo). É uma das sensações mais gostosas que existem descer uma colina de bicicleta, sem esforço ou barulho, sentindo na cara o vento relativístico oriundo do seu referencial em movimento relativo com a atmosfera. Mas após cada curva e ladeira vencidas sem esforço, eu não conseguia não pensar que eu teria que enfrentá-las novamente na volta, mas agora com a gravidade atrapalhando na exata medida em que me ajudava no momento.

Cheguei em Florença 8 quilomentros depois. Não há como fazer justiça a beleza e simetria (nas acepções original e moderna do termo) desta cidade. Mas pelo menos posso elogiar o sanduiche de tripa picante vendido em um beco em algum lugar entre o Duomo e o Bargello (a geografia local ainda é um pouco nebulosa para mim).

A volta foi tão penosa quanto me disseram que seria. O Bigallo é daquelas colinas côncavas, em que a inclinação vai aumentando a medida que vamos subindo. Graças a esta segunda derivada pouco coperatica, quanto mais cansado eu ficava, mas pesada ficava a marcha. Em uma atitude quas bíblica, um italiano que estava a ponto de sair de casa com sua vespa espontaneamente me ofereceu água. Fortificado pela solidariedde alheia, atravessei Bagno a Ripoli, e finalmente entrei na ruazinha tangente à mais alta praça da cidade; o último e mais íngreme (porém curto) do trecho percurso. Cheguei de pernas bambas na hospedaria, na entrada da qual uma supresa funcionária do albergue fumava um cigarro.

Hoje eu subi o morro de novo. Acredite, não fica mais facil. Amanhã vou ter que me mudar daqui. Quando eu fiz a reserva, não havia mais vagas disponíveis a partir do dia 16; não sei se gosto da ideia; se por um lado ficar mais perto da cidade, vertical e horizontalmente, é mais comodo, por outro é dificil imaginar um lugar mais agradável para ficar. Vamos ver.

PS: Escrevi este post a três dias, mas só estou subindo ele agora...

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terça-feira, 12 de julho de 2011

Casa, Rio de Janeiro
Zumbizando poesia vogon

Estou indo para a Itália amanhã. Hoje. Já que são quatro da manhã. O propósito da viagem é

i) Apresentar em um encontro em Florença um trabalho sobre como calcular a massa média de neurônios e glias no cérebros (e subestruturas) de diversas espécies de primatas e roedores, baseado no fato de que as células gliais apresentam uma simpática uniformidade, não importando muito onde ou em que bicho elas se situam.

ii) Fazer um passeio de bicicleta (dobrável!) por algumas cidades da Toscana; um tour de 4 dias subindo e decendo uns 60km de morro com míseras 7 marchas por dia, no estilo 'O que não te mata te deixa mais forte'

iii) Fazer um tour por Portugal e o oeste espanhol, de carro, com a minha família, que encontro em Lisboa no final do mes.

É uma viagem eclética, e deveras promissora. O único problema é que, no meu estado atual, acho que vou passar uma semana na Itália só dormindo. Explico...

O final deste semestre lembrou muito um engavetamento em alta velocidade: É muita coisa tentando acontecer em pouco tempo e pouco espaço; colisões imprevistas levam à acomodações que são tão desajeitadas quanto são desconfortaveis; e você só se da conta da gravidade da situação quando já está no meio dela. O numero de coisas que precisavam ser resolvidas antes da viagem parecia se resetar sempre que aproximava do zero. As provas e relatórios e notas de quatro turmas de Física Experimental... Três papers para terminar de redigir, um deles com um prazo... Um relatório para pedir renovação da minha bolsa... o Poster que vou apresntar... os preparativos da viagem.

O resultado é que faz quase uma semana em que durmo 2 - 3 horas por umas duas noites consecutivas, entro em colapso morphético no terçeiro, e recomeço o ciclo. Agora, a 8 horas da minha viagem, só falta fazer a mala, cortar o cabelo, entregar o relatório e terminar um paper. Facil. Ou então a parte do meu cortex pré-frontal responsável pelo bom senso já foi desligada.

Na minha situação atual, consigo trabalhar em condições quase normais; mas ocasionalmente eu sofro um piripaque e faço coisas estranhas. Como escrever este post. Ou escrever o epitáfio de um irritante mosquito que matei após várias picadas e palmas anti-aereas:

Warm blood flows in her proboscis, can't stop now. A wall of flesh approaches; infinitely slow, and yet inescapable. Blood heavy, she accepts fate. Savor one last bite; and in the brief moment before being crushed, think deeper and more sublime thoughts than ever conceived by a mammalian mind. Oh, the warm, salty tang of irony!
Como bem disse o Catão, "E esse foi o tema do primeiro (e único) sarau de poesia Vogon da Galáxia. Trechos do evento ainda são utilizados ocasionalmente em presídios e guerras civis especialmente violentas". No facebook, foi capaz de unir israelenses e palestinos, dispostos a esquecer suas diferenças e unir forças para não ter que ouvir/ler mais coisas do tipo. O que obviamente me sugeriu escrever uma sequência... Pois palmas não são a única, ou a mais elegante, maneira de se matar um mosquito.


Oh Laser, photonic foe! Why do your bosons excite my leptons so?

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quarta-feira, 29 de junho de 2011

Lareira, Hotel Orotour, Campos do Jordão
Idílio Paleolítico

Estou em Campos do Jordão, para mais um 'Nova Física do Espaço' (o décimo ao todo, e quarto de que participo). Está fazendo um frio glacial, o que torna particularmente agradável a lareira sobre cujo ombreira estão os meus pés. Agora a pouco um grupo de chorinho (quase) exclusivamente feminino, o 'Choro de Saia' estava tocando; uma delas é casada com um pesquisador do Inpe (o Alex, que arranjou algumas das músicas).

Antes da música, eu estava tendo um dia bastante paleolitico. Depois de apresentar o meu trabalho pela manhã (o que transcorreu muito bem), eu e o Reza (o meu colaborador britânico de origem iraniana) passamos as três horas seguintes subindo morros e percorrendo trilhas. De volta ao hotel, depois de trabalhar um pouco, comi quantidades industriais de carne mal passada em um churrasco organizado pelo evento. Reavivei então a lareira com pilhas de lenha e uma afanação vigorosa com programa do Nova Física. Realmente, é um estilo de vida bem neandertal este que consiste em perambular por matos e morros, comer carne quase crua e acender fogos crepitantes*. Eu estava a ponto de tacapear alguma transeunte randômica mais apresentável, quando o chorinho começou. Este teve um profundo efeito civilizatório em mim, e me lembrei o suficiente de 20000 anos de evolução cultural para escrever neste blog.

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* As duas últimas atividades são o que permitiram nossos antepassados (a partir do Homo Erectus, que primeiro fez uso do fogo) terem cérebros grandes e metabolicamente caros; se tivessemos que subsistir da alimentação dos gorilas (sem cozimento, sem carne), precisariamos de passar mais de 12 horas por dia comendo só para não morrer de fome.

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segunda-feira, 20 de junho de 2011

Casa, Rio de Janeiro
Interstícios

"Você não vai pular não, vai?" - me perguntou o segurança assim que a sua cabeça, de onde saltavam dois olhos esbugalhados de medo, surgiu por sobre o parapeito. Não, eu não me sentia particularmente suicida e não tinha a menor intenção de descer os sete andares do CBPF em queda livre, eu assegurei a ele. "Estou só estudando", disse. "Então é melhor você estudar em algum lugar menos visível" -  retrucou o guarda, um tanto aliviado - "Esta caixa d'água é muito exposta, e os vizinhos dos prédios a frente podem se assustar com você ai".

Um visitante ocasional ao prédio do CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, na Urca, onde fiz meu doutorado) poderia compreensivelente supor que por lá só existem 6 andares. Todos os gabinetes e salas identificados ficam entre o térreo e o sexto andar, que é até onde vai o elevador. Mas o uso judicioso de certas portas discretas de acesso às escadas de incêndio e, ocasionalmente, de grampos de papel engenhosamente torcidos, permite o acesso a um espaço que é melhor definido pelo que ele não é: o lado de fora pela parte de cima; onde se acomula toda a infra-estrutura (acro-estrutura?) que não poderia propriamente ficar dentro do prédio (antenas, para raios, caixas d'água, etc). Pois uma consequencia inescapável da orientabilidade da geometria do prédio é que, se gabinetes e salas de aula precisam ficar dentro deste último, limitadas acima por um teto, então necessariamente uma superfície horizontal externa deverá existir: um telhado.

O telhado em questão tem uma vista espetacular, interpolando panoramicamente a Praia Vermelha, o Pão de Açucar e a Marina da Glória. Um vista melhor, de fato, do que a de qualquer gabinete. Posso dizer que fiz boa parte do meu doutorado lá em cima, sentado sobre uma toalha mantida na minha sala com este expresso propósito e bebendo coca-colas enquanto lia artigos e fazia contas (ou conchilava). Era uma maneira agradável e produtiva de passar o dia. Mas é compreensivel que uma senhora, ao olhar através da janela de um prédio vizinho, chegasse a conclusões um tanto menos benignas, após me ver no topo de uma caixa d'água de concreto, alternadamente sentado contemplativamente de cabeça baixa, e indo e voltando quase até a beira,a passos lentos e de cenho franzido.

A vista do topo do meu prédio novo em Laranjeiras, embora agradável, é menos espetacular que a do CBPF. Mas pelo menos até agora ainda não fui confundido com um suicida. Mas é um espaço com um(a falta de) propósito idêntico. Tais espaços intersticiais surgem de forma emergente na interface de espaços que tem um propósito; eles não são planejados, mas são inevitáveis. Em lugares enfaticamente não planejados, tais como Londres, tais interstícios, quando marinados em aguns séculos de história, praticamente definem o traçado urbano. Vãos entre prédios se tornam becos, ruelas e ruas; e praças se formam em defeitos topológicos do traçado urbano (que é um palimpseto fóssil muito mais antigo que qualquer estrutura, e que em alguns lugares remonta a tempos romanos).

No rio, tais interstícios publicos e fosseis urbanísticos são mais sutis, mas me afetam as vezes até de maneira inconciente. Estou gostando muito do meu novo apartamento, e bairro. Tanto, de fato, que comecei a me perguntar porque. Em ambos os casos, a resposta parcial é que o espaço parece menos tolhido. No nucleo duro da zona sul, em Ipanema, Leblon e (principalmente) Copacabana, tudo parece brigar por espaço, tentando colocar mais gente e mais coisas no mesmo espaço limitado. Com mais ou menos primor, os prédios se expremem como passageiros no metro de Tóquio; a visada nunca consegue chegar muito longe sem ser interrompida. E este expremer constante não deixa lugar para história: construções, traçados e interstícios antigos não duram muito em tal ecosistema, e são rapidamente absorvidos por vizinhos em expansão ou novas construções, de modo que nem mesmo a sua memória é preservada.

Laranjeiras tem mais história e menos pressão.  A agua potável do rio Carioca atraiu os portugueses, que se estabeleceram por aqui antes mesmo de fundarem a cidade do Rio de Janeiro e quando Copa era um mangue remoto. De certa forma, embora ele esteja quase todo canalizado, o Carioca ainda define muito do traçado do bairro. Desta história  interstícios como o Parque Guinle, a General Glicério e o Largo do Boticário surgiram e foram preservados, assim como diversas ruelas de curioso traçado e predios interessantes.  Os prédios não são necessariamente maiores, mas são mais... espaçosos. É como se eles tivessem sido criados soltos, ao contrário dos prédios de cativeiro de Copa e redondezas.


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sábado, 11 de junho de 2011

Hotel Amerian, Puerto Iguazu
Érre xê


Ontem, terminado o congresso, eu e a Mari (da Física/UFMG) alugamos um carro para uma excurção mercosúlica. A ideia era passar por várias ruinas Jesuitas, na Argentina e Paraguay, e voltar hoje. Para uma viagem organizada as pressas, consegui elaborar um roteiro bastante detalhado, e li bastante sobre a história das missões jesuítas. A única coisa que não fiz foi verificar quais os procedimentos de entrada na Argentina. Mercosul, pais irmão e tal, me lembro de decidir levar só a carteira de motorista, e não o passaporte ('levo a carteira de motorista, e corro menos risco no Paraguai...' - pensei). Depois de uma pequena celeuma desinteressante com a administração do hotel do congresso, fomos ao aeroporto e pegamos o carro. Tudo verificado, atravessamos a fronteira. Para dirigir além de Puerto Iguazu, me informaram, era preciso solicitar um 'permisso' na alfândega. Solicitei, portanto, o permisso. Entreguei os documentos do carro e minha carteira de motorista. "Ond essta seu érre xê?" - me perguntou a policial argentina. "Na parte de baixo do documento em suas mãos" - respondi. "Naao, carteera de mótorissta naao vale. Só o érre xê". Alguma iterações deste discussão depois, finalmente consegui entender que, sem meu documento de RG ou meu passaporte, eu não poderia ir além de Puerto Iguazu. Saco. Saco ao quadrado. Saco^Saco. Eu tenho que dizer que passei algum tempo me sentindo (e agindo) como uma criança para quem o natal não veio.

No final, o dia se acertou. Trombamos com outros três colegas expatriados na churrascaria em que almoçamos, e fomos todos juntos nas cataratas do lado argentino, onde eu passei de barco (e me enxarquei) praticamente embaixo das quedas d'água. (dois dias antes eu já havia ido a margem brasileira). São dois passeios que valem a pena; no lado Brasileiro pela vista (pense na vista do Rio, a partir de Niteroi), e do lado Argentino pela proximidade quase visceral com a torrente de água, de cima e de baixo.



O barco parte de uma pequena e tranquila praia fluvial, no final de uma trilha pela selva. Inicialmente ele vai muito rápido, desviando de eventuais rochas semi-submersas, em um rio canalizado entre dois barrancos tão altos quanto ele é largo. As cataratas começam com um murmúrio, que vai ficando mais alto enquanto elas primeiro aparecem, distantes a frente, e depois crescem e continuam a crescer impossivelmente altas e barulhentas. Quando formam um paredão de agua e pedra ao nosso lado, o barco começa a ter dificuldades em vencer a correnteza. Na entrada da garganta, o gradiente da superfície líquida já é notável; o barco tem que praticamente subir uma colina de agua escoente. Lá dentro, estamos imersos em uma chuva estacionária lançada pelos gaisers produzidos pela água que cai espalhafatosamente sobre as pedras e sobre o rio. Subimos e descemos em cima de ondas um tanto incoerentes, que se propagam de um lado para outro, indecisas*.

Depois de um espaço de tempo indefinível, eu estava em outro cais, enxarcado até os ossos, e com uma trilha a minha frente levando até o topo das cataratas, onde reencontrei meus amigos. Saimos do parque a noite; eu e Mariana para caçar algum lugar para ficar em Puerto Iguazu (e não em Santo Ignacio...), e os outros de volta para o Brasil.

Foi, no final das contas, uma viagem interessante, principalmente pelas companhias, planejadas e extemporâneas. Mas da próxima vez que eu vier a Foz, farei o meu roteiro jesuita. Com meu érre xê.




________________
* Repare que o volume da agua não tem dificulde em encontrar o seu caminho para sair da garganta. É o momento linear transmitido pelas ondas, ou pelo menos aquele associado aos seus comprimentos de onda mais longos, que têm dificuldade de enxergar a saida.

PS: Todas as fotos estão no flickr.

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segunda-feira, 6 de junho de 2011

Centro de Convenções Rafain, Foz do Iguaçu
Barreiras culturais



Físicos e biólogos, mesmo quando discutem o mesmo assunto, parecem não só pertencer a disciplinas distintas como habitar planetas diferentes. Em se tratando de modelos que procuram explicar fenômenos biológicos, físicos procuram obter grandes sínteses e elaboram teorias matematicamente elegantes mas de aplicabilidade as vezes dúbia; enquanto biólogos analizam detalhadamente cada sistema e produzem classificações e taxonomias barrocamente detalhadas de seus componentes, que descrevem muito mas prevêem muito pouco.

O parágrafo acima é o começo do anúncio de uma palestras que dei no departamento de física da UFMG na sexta passada, para um plateia mixta de físicos e biólogos. O que mostra que eu não hesito em reciclar textos usados, ou possivelmente ofender a minha audiencia. Mas o que é ofensivo nem sempre é falso; de fato, o contrário é provavelmente mais comum. As diferentes atitudes das duas comunidades científicas referentes a sistematização do conhecimento vêm, obviamente, das diferenças entre seus respectivos objetos de estudo, e o reconhecimento pragmático daquilo que historicamente foi bem sucedido. Mas eu sou um físico trabalhando entre biólogos. Mesmo quem mora no estrangeiro a anos ainda se surpreende com os hábitos locais ocasionalmente. Da mesma forma, para mim, o choque cultural ainda é algo sempre presente. Eu falo a lingua deles com mais desenvoltura agora, mas nunca vou perder o meu sotaque.

No primeiros seminários que dei na biologia, o choque cultural foi mútuo. Da primeira vez, fui falar sobre leis de escala e invariância por escala. 'Vamos começar com uma matemática levinha' - pensei - 'assim eles vão se acostumando'. Na segunda equação, a minha plateia já trocava olhares assustados; alguns slides depois, os olhares se dividiam entre semi-catatônicos e exasperados. Eu demorei algum tempo até conseguir explicar alguns dos conceitos que eu acho tão fascinantes de forma que eles ao mesmo tempo entedessem, e considerassem relevante. Ao mesmo tempo eu não sabia nada de biologia. Eu conhecia diversos termos, claro, e era até bastante familiar com alguns dos conceitos centrais. Mas era preciso me levar pela mão para que eu fosse capaz de produzir algo aplicável. Eu era uma espécie de artilharia de sítio matemática, a ser empurrado até os muros de algum bastião inimigo mais problemático para abrir caminho para tropas amigas.

As poucos a comunicação foi ficando mai fácil; assim como duas espécies acopladas biologicamente, o físico e os biólogos evoluiram até se adaptarem uns aos outros. A minha matemática, se não é completamente entendida, pelo menos é mais bem aceita; trabalho agora com dois alunos de biologia que não só são extremamente proficientes em programaçao, mas também me acompanham em minhas elocubrações sobre redes neuronais. E quando peguei a minha chefe rabiscando equações no caderno durante uma palestra que (supostamente) assistíamos, quase pensei 'my task here is complete'.

Em vista disto, dar uma palestra na física foi quase como voltar para casa. Uma audiência que não acha que matriz simétrica é um filme com o Keanu Reeves. Pessoas que encaravam equações como algo natural; ocasionalmente eu ficava reflexivamente esperando uma reação adversa perante alguma manipulação matricial menos trivial... E ninguem parecia particularmente alarmado! Por outro lado, eu já havia me acostumado a falar sobre axônios, oligodendrócitos e colunas funcionais corticais sem ter que dar maiores explicação; mas desta vez tinha que me dar conta que a minha nova audiência talvez nunca tivesse ouvido estes termos.

De qualquer forma, a palestra correu bem (a menos de um ligeiro estouro do tempo e um final de seminário dito no estilo Eneas). É uma familia interessante de modelos neuronais. Em um deles, eu faço uma soma de todos os caminhos fechados que passam por cada neurônio, associando uma fase a cada ciclo de modo que ciclos sîncronos sejam somados construtivamente.

Estou agora em Foz do Iguaçu, usando o meu chapeu de cosmólogo. Esta ocorrendo uma espécie de congresso de congressos das várias áreas da física brasileira. O encontro está sendo excelente, bem organizado e com trabalhos muito interessantes. Depois escrevo mais; estou com planos para um excursão paraguaia um tanto inortodoxo.

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terça-feira, 5 de abril de 2011

Casa, Belo Horizonte
José Alencar e eu

Os tópicos dos quais trato neste blog são bastante diversos; mas tenho que reconhecer que obituários de políticos não são exatamente a minha linha. Mesmo assim, enfim, é fato que o José Alencar, ex-vice do Lula, morreu. Ele me parecia uma cara decente, e fico feliz que tenha conseguido completar o mandato. Porém, um post dedicado somente a tecer banalidades sobre alguém que eu conhecia só superficialmente seria um exemplo clássico do tipo de irrelevância auto-indulgente pela qual a internet é notória. Mas existe uma conexão, tênue mas não-trivial, entre o José Alencar e eu.

Eu criei o seu verbete na Wikipedia...

Repito: Nunca encontrei o falecido, ou tive por ele qualquer curiosidade excepcional. Mas em 2004, quando a wikipedia era novidade, eu queria fazer um experimento: estudar, em tempo real, como um verbete evolui, da sua criação até a maturidade. Como eu escrevi aqui na época:

[Eu] queria algo que fosse

a) Curto: Eram 3 da manhã e não queria ter mais que 2 minutos de trabalho
b) Fácil: Não queria pensar muito; um pequeno artigo factual não controverso
c) Útil: Um verbete curto só seria útil se fosse sobre um tema pontual e obscuro (para os leitores da Wikipedia). Algo que vc poderia ler mencionado em uma página na rede, e se perguntar o que é.

Decidi então escrever um paragrafo curto sobre... José Alencar! Nosso vice-presidente... Não tenho nenhum interesse especial pelo cara, nem sabia muito sobre ele. Mas ele se encaixava em todos os criterios: Uma micro-biografia é simples, incontroversa, e um carinha randômico lendo o NYT acharia o verbete útil (pq ele só que saber quem é José Alencar, não ler José Alencar: Vida e Obra). Fiz uma pesquisa de 1 minuto, e escrevi o texto. A lógica é bizarra, mas consistente...
O texto que escrevi era curto, com somente cinco frases factuais e não controversas:

José Alencar Gomes da Silva is the vice president of Brazil since 2002, under president Luis Inácio Lula da Silva. Born in Muriaé, in the inland state of Minas Gerais in October 17th 1931, he became a successful businesman, and was elected for the Senate in 1998. In 2001 he was selected as Lula´s running mate, in an effort to assuage worries about the then candidate´s supposed anti-business bias.

In office Alencar has often criticized his own goverment for failing to lower interest rates. In November 2004 he was sworn in as defence minister, following the resignation of José Viegas.

Ao longo dos anos, eu acompanhei a evolução do artigo com ares paternais. A primeira edição veio quase um mês depois, colocando em bold o nome do verbete e adicionando uma bandeirinha para indicar que o artigo tratava do Brasil. As ediçoes foram então se acumulando gradualmente, adicionando detalhes, formatação, uma simpática foto, e bibliografia. Em 2008, o verbete tinha 5 paragrafos e cerca de 4000 bytes (contra os 600 originais). Após a morte de Alencar, o crescimento foi mais rápido: o artigo ganhou corpo, dividiu-se em seções, e triplicou de tamanho. Mas em momento algum um pretendente a biógrafo ou enciclopedista se sentou em frente ao computador para escrever ab initio o verbete definitivo após longa pesquisa, a mãe de todos os verbetes, sobre o José Alencar. Pelo contrário, na melhor tradição da wikipedia, o razoavelmente completo artigo atual é o resultado de quase 500 pequenas contribuições, que coletivamente conseguiram compor um texto genuinamente digno de uma enciclopedia.

No nivel molecular, a evolução biológica é extremamente conservadora. Estruturas desenvolvidas para uma função e situação específicas são adaptadas e readaptadas para os mais diversos fins; o notório ciclo de Krebs preserva em seus cantos mais recôndidos uma série de reações que aconteciam expontaneamente nos mares primordiais, cooptadas em um ciclo metabolico cujas ideosicrasias nos contam sua história. Analogamente, na Wikipedia o desenvolvimento de cada verbete tem mais em comum com a evolução de uma bacteria a partir de uma sopa bioquímica primordial do que com a construção de um prédio. Ao longo da evolução de um verbete, eu gostaria de estudar se, e como, eram preservados as evidências fosseis de sua origem.

De fato, das cinco frases que compunham o meu verbete original, nada menos que quatro estão presentes na versão atual, com pequenas modificações. Ao longo dos anos elas mudaram de lugar e de ordem; antes juntas, foram separadas por frases e paragrafos novos. Mas José Alencar continua nascido em ´Muriaé, in the inland state of Minas Gerais´. Se em 2004 ele foi ´selected as Lula´s running mate, in an effort to assuage worries about the then candidate´s supposed anti-business bias´, hoje dizemos que ele ´was tapped to be Lula's running mate, in an effort to assuage worries about the candidate's alleged anti-business bias´. E se antes ele ´has often criticized his own goverment for failing to lower interest rates´, mais recentemente ele ´often criticized his own administration for failing to lower the Central Bank's base interest rates´.

É claro que qualquer verbete mais completo incluiria a informação contida nas frases acima. Existem porém incontáveis maneiras concebíveis de se expressar tais ideias; mas foram as estruturas e termos que eu circunstancialmente escolhi em 2004 que continuam a ser usadas. O texto atual, muito mais extenso e complexo, preserva a linguagem fossil primordial, que em maior ou menor medida ainda guia o seu desenvolvimento. Assim como as mitocôndrias no interior de nossas células preservam e em grande parte se definem pelos azares pré-cambrianos de sua evolução.

Não só na Wikipedia e na bioquímica o estado atual é, mais que um consequencia, um registro de sua história. Sistemas que evoluem ao invés de serem criados costumam apresentar esta propriedade. Unidades angulares, constelações e relatos mitológicos sumérios foram (e são) usados milênios depois de que a civilização que as originou havia sido esquecida. As circunstâncias específicas, geografia e história de uma península montanhosa as margens do Egeu e de uma cidade de origens conturbadas fundada sobre sete colinas beirando o Tibre determinam não só a nossa terminologia política, mas em certa medida ainda moldam nossas ideias idem. A internet hoje também é o resultado das circunstâncias da origem de seus vários componentes. Do uso do caracter ´@´ aos protocolos abertos, passando pela neutralidade de rede, a separação em camadas entre conteudo e a sua transmissão, e o ethos confrontativo e anárquico da Usenet, tudo poderia ter surgido de forma diferente. Mas agora que a rede se tornou o sistema nervoso mundial, é muito dificil mudar os seus fundamentos. Algo que foi criado quase sem supervisão ´adulta´ ou hierarquia definida pela subcultura nerd de uma sociedade liberal, conseguiu se tornar ubíqua e imprecindível antes que o mundo se desse conta das consequencias deste fato. Tivemos, creio, muita sorte.

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domingo, 20 de março de 2011

Pousada dos Gravatás, Buzios
De Buzios a Benghazi



Estou em Buzios com a Ceci, para o fim de semana; estou de ferias da usina de Fukushima, dos protestos em Bahrain, Yemen e Siria, e da guerra civil Líbia. Mas mesmo daqui da beira-praia, a realidade insiste em continuar acontecendo.

No Japão, após uma série concatenada de falhas e explosões, as coisas parecem estar se acalmando na usina nuclear de Fukushima. Todos os reatores estão sendo resfriados de uma forma ou de outra, e aos poucos vão sendo ligados à rede elétrica. A situação das barras de combustível "gastas" é mais séria. Como em boa parte dos reatores no mundo (incluindo Angra I e II), tais barras eram armazenadas nos próprio prédios dos reatores, cobertas de, e resfriadas por, agua circulante em grandes piscinas*. Sem energia elétrica, a agua não circula, e é aquecida pelos resíduos de fissão mais ativos. Após algumas semanas, a agua evaporaria, e as barras ficariam expostas ao ar. A combinação de oxigênio e barras superaquecidas poderia então produzir um incendio, que espalharia fumaça contendo Césio-137, Estrôncio-90 e Plutônio-239 por onde o vento a carregasse.


É um cenário potencialmente catastrófico. Felizmente, haveria ainda bastante tempo para agir antes que as barras ficassem descobertas. A não ser, obviamente, se as piscinas fossem danificadas de alguma forma. Por um terremoto, por exemplo.

A maior parte da atividade frenética nos últimos dias em Fukushima consistiu de tentativas de colocar mais água nas piscinas dos reatores #3 e #4. Por helicóptero, por mangueiras de alta pressão ou por qualquer outro meio a ser inventado pela criatividade nipônica. Ao que parece, o pior foi evitado. Quando a energia elétrica for restaurada nos reatores, poderemos repetir esta última frase com mais convicção.

Na Líbia, a guerra civil grassou a semana inteira, com as tropas leais ao Gadhafi indo zenga zenga atrás dos rebeldes. Várias cidades controladas pelos rebeldes foram caindo em rápida sucessão. Com tanques a menos de 200km de Benghazi (capital rebelde), e com Misrata cercada, a nova revolução Líbia parecia natimorta. Porém, após uma enérgica e belicosa ação diplomática francesa (!), um apelo por uma zona de exclusão aérea por parte da liga árabe (!!) e um rápido e decisivo debate no conselho de segurança (!!!), uma resolução foi aprovada (permitindo o uso de todos os meios para proteger civis) que na prática colocou uma coalizão de paises ocidentais e árabes (!x4) em guerra com as forças Gadháficas. Ataques aéreos limitados já ocorreram, e é ainda mais difícil que o usual tentar adivinhar aonde isto vai parar. Então não vou nem tentar, porque quero aproveitar a praia em Búzios, não em Tripoli.

Finalmente, inspirados pelas revoluções e protestos que sacodem o mundo árabe, e iterando a sequência já reprisada alhures de protestos - repressão - criação de martires, grandes distúrbios estão ocorrendo na cidade de Daraa, ns Síria**, que está aparentemente cercada por tanques leais ao governo. Como a Síria tem um dos regimes mais fechados e de sinistra reputação da região (um feito impressionante), o potencial para uma segunda Líbia é alto. Esta é uma notícia relativamente nova, então não tecerei maiores comentários, até pelo menos eu estar de volta ao Rio de Janeiro. Um bom lugar para acompanhar a situação, porém, é no blog com o nome talvez inevitável de 'The Road to Damascus'.



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* Tais piscinas costumam ser o ponto alto de qualquer visita a uma instalação nuclear. As párticulas subatômicas irradiadas, ao se moverem mais rápidamente que a velocidade da luz no meio (agua), geram o equivalente eletromagnético da onda cônica de choque produzida por aviões supersônicos: a chamada radiação Cherenkov, que vemos como um brilho azul fantasmagórico bastante memorável.

** Note que, juntamente com a Argelia, a Síria votou contra a resolução da liga árabe pedindo uma zona de exclusão aérea. Devido a sua história de família, o presidente Assad obviamente não fica muito confortável com o precendente assim aberto.


As ondas da mudança se aproximam do Oriente médio...

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domingo, 13 de março de 2011

Casa, Rio de Janeiro
De Angra a Fukushima


Os prédios contendo dois reatores em Fukushima explodiram; uma quantidade (e qualidade) não especificada de 'radiação' escapou, e os técnicos no local parecem incapazes de impedir o aquecimento descontrolado dos reatores. Por mais terriveis que sejam o terremoto e tsunami concomitante que atingiram o Japão, com um numero de mortos confirmados muito maior do que a mais pessimista estimativa plausível para a quantidade de eventuais vítimas fatais por radiação, é o espectro da catastrofe nuclear, mesmo que vagamente definida, que assusta.

Primeiro, uma digressão técnica: Os isótopos de urânio e plutonio usados como combustíveis nucleares tem uma propriedade inusitada: Ao serem atingidos por um neutron, o seus núcleos se partem em dois isótopos instáveis, que vão se subdividindo em uma cascata de fissões expontâneas. O resultado final é uma quantidade prodigiosa de energia liberada, alguns resíduos radioativos menos instáveis (e.g. Césio-137), e um certo número de neutrons livres, que podem por sua vez fissionar núcleos vizinhos. Tal reação em cadeia é o segredo da fissão nuclear. Se a fissão de um núcleo gerar em média mais do que uma fissão de núcleos vizinhos, o numero de reações vai aumentar a cada passo, até o combustivel se exaurir e o terreno em volta adquirir uma aparência vitrificada suavemente fosforecente. Mas se em média exatamente um neutron gerado por cada fissão ocasionar uma nova fissão, temos uma reação (dita crítica) pelo menos momentaneamente estável. Uma reação que gostaríamos que fosse controlável, e passível de usos menos explosivos.

Um reator nuclear é, por definição, um local onde uma reação nuclear controlada acontece. E as principais variáveis a serem controladas são duas: A velocidade com que a reação ocorre, e a temperatura do nucleo do reator. A velocidade de reação, que determina a potência sendo gerada, é regulada pelo controle dos neutrons, através da variável disposição de materias que ora absorvem, ora desaceleram, ora refletem estes últimos. A energia térmica assim gerada é dissipada por meio da troca de calor mediada por fluidos em uma série de ciclos fechados (a natureza, quantidade e disposição destes ciclos em grande parte definem o modelo de reator em questão). Se a reação em cadeia fugir do controle, ou o ciclo de trocas térmicas não funcionar a contento, a temperatura do núcleo do reator sobe, até que este último sofra um derretimento, total ou parcial, com resultados total ou parcialmente catastróficos.

Uma lição a ser tomada disto tudo é que um reator nuclear precisa gastar energia para funcionar, bombeando fluidos e movendo elementos de controle de neutrons. Obviamente, em condições normais, mais energia é gerada do que consumida. Mas, crucialmente, isto implica também que um gerador precisa de uma fonte externa de energia para ser desligado.

Normalmente os mecanismos de controle de um reator nuclear são conectados diretamente à rede elétrica externa. Se a rede cai, por medida de segurança um sistema de backup de geradores a diesel é acionado, e o reator é desativado automaticamente (mas não instantaneamente).

Aparentemente, após o terremoto, o desligamento automático de emergência de todos os reatores de Fukushima ocorreu sem transtornos. Isto significa que a reação em cadeia de fissão não está mais ocorrendo (i.e., sem síndrome da China ou, mais propriamente, do Brasil, já que a antípoda de lá é por aqui); mas alguns isótopos instáveis, produzidos anteriormente pela reação em cadeia, continuam por lá, produzindo uma quantidade ainda significativa de calor com seu decaimento. Imediatamente os geradores a diesel foram ligados, e estavam funcionando normalmente, permitindo que o ciclo de água não pressurizada resfriasse o núcleo. Foi então que o tsunami chegou.

O tsunami destruiu os geradores a diesel. Por algumas horas um conjunto de baterias, o backup do backup, manteve as bombas de resfriamento funcionando. Mas quando a carga acabou o sistema de bombeamento parou de trabalhar; a temperatura começou a subir, fora de controle. No reator #1, algumas das barras de combustível começaram a se desfazer, gerando entre outras coisas hidrogênio, que foi liberado juntamente com vapor d'água para aliviar a pressão interna, e explodiu em contato com o oxigênio no interior da estrutura de contenção externa. Sem mais alternativas, os japoneses se viram forçados a bombear agua do mar para o interior do reator, o que finalmente conseguiu resfriar o núcleo. Algo parecido parece estar ocorrendo com o reator #3.

A boa noticia é que o projeto dos reatores em questão é intrinsecamente mais seguro que o malfadado reator # 4 de Chernobyl*. Os sarcófagos de contenção dos núcleos sobreviveram intactos ao terremoto, ao tsunami e às explosões subsequentes (feito de engenharia por si só bastante impressionante, tudo o que falta agora é um Godzilla em fúria), e é improvável que uma quantidade significativa de radioatividade escape para o ambiente. A má noticia é que a situação ainda não está totalmente controlada, e uma pequena quantidade de resíduos radioativos escapou junto com o gás ventilado, o que implica que a integridade física de pelo menos uma das barras de combustível foi comprometida. E a noticia bizarra é que eu já testemunhei pessoalmente o desligamento emergencial de um reator nuclear a partir da sala de controle. E, pelo menos em termos dramáticos (i.e., se estivássemos em um filme) ou supersticiosos (i.e., se não acreditássemos em coincidencias), a causa fui eu.

Exatamente 12 anos antes do terremoto, no dia 11 de março de 1999, eu, estudante de graduação de física, estava no complexo nuclear de Angra dos Reis. Era uma visita guiada bastante detalhada, na qual conheci cada canto de Angra I e Angra II (então em construção). Para o grande finale, fui levado para a sala de controle de Angra I. Me vi em meio a incontáveis indicadores analogicos, dials e botões, faixas indicadoras no chão exclusivas para operadores de plantão, e funcionários cujo trabalho era ficar sentado monitorando seus intrumentos, exceto no caso de emergencias. Um simpático engenheiro, o encarregado do turno se não me engano, me explicava pacientemente o que fazia cada painel (eu tinha muitas perguntas). Finalmente, chegamos em frente ao painel referente ao status do gerador a diesel de backup. "Para que uma usina nuclear precisa de um gerador a diesel?" - perguntei, inocentemente. Ele me deu exatamente a mesma explicação que reproduzo mais acima no presente texto. Naturalmente, a minha próxima pergunta foi: "Mas este gerador já teve que entrar em funcionamento alguma vez?". Instantes após eu formular a pergunta ("algumas vezes...", ele começou a responder), um klaxon, daqueles que se vêem em filmes de submarino, começou a soar. Luzes vermelhas se acenderam. Os contemplativos plantonistas saltaram de suas cadeiras e puseram em prática seus anos de treinamento. Os leds do painel de controle do backup elétrico piscavam furiosamente, e ao fundo eu podia ouvir o ruido inconfundível de um gerador a diesel entrando em funcionamento.

Um apagão, geograficamente restrito de inicio, derrubara a rede elétrica do Rio de Janeiro. O sistema de emergência havia sido acionado, e Angra I estava sendo desligada.

Fiquei na sala de controle por mais algum tempo, esquecido em meio ao caos organizado. Resgatado por meu guia, fui embora pouco depois, e não voltei desde então. Sei, porém, que adquiri uma certa fama. O meu irmão, fazendo um estágio por lá no ano seguinte, foi saudado ao chegar como o 'irmão daquele cara que parou a usina'. Sei que, objetivamente, eu não tive nada a ver com o incidente; mas a irracional sensação de que a lei de Murphy operava através de mim por meios sutis é inescapável. No mesmo dia, um apagão ainda maior deixou as escuras boa parte do territorio nacional. A explicação oficial é que um raio causou uma reação em cadeia, derrubando uma rede já operando no seu limite. Mas eu estava lá, em Angra. E sei que, se foi esta a causa, os raios cairam em dupla. Parece implausível, embora em visto do ocorrido eu não me sinta muito a vontade para falar de implausibilidades. Só posso dizer que, em minha defesa, eu não estava no Japão quando ocorreu o terremoto. Só perto de sua antípoda.

PS: A cobertura na imprensa está sendo um tanto histérica. O NY Times está se mostrando melhor que a média, e o seu gráfico interativo sobre o incidente é bastante informativo. Para uma discussão interessante entre quem parece entender melhor do assunto (i.e., ex-tripulantes de submarinos nucleares), veja aqui. Uma tentativa de acalmar os animos pode ser encontrada aqui, e noticias em geral com um viés nuclear, aqui.



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*Se os sovieticos projetassem carros como projetavam reatores, andariam em monociclos motorizados movidos a nitroglicerina. E se dirigissem os primeiros como administravam os últimos, tentariam ajustar a altura do banco e a estação de rádio simultaneamente enquanto ultrapassavam retardatários pela contramão.


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