segunda-feira, 20 de junho de 2011

Casa, Rio de Janeiro
Interstícios

"Você não vai pular não, vai?" - me perguntou o segurança assim que a sua cabeça, de onde saltavam dois olhos esbugalhados de medo, surgiu por sobre o parapeito. Não, eu não me sentia particularmente suicida e não tinha a menor intenção de descer os sete andares do CBPF em queda livre, eu assegurei a ele. "Estou só estudando", disse. "Então é melhor você estudar em algum lugar menos visível" -  retrucou o guarda, um tanto aliviado - "Esta caixa d'água é muito exposta, e os vizinhos dos prédios a frente podem se assustar com você ai".

Um visitante ocasional ao prédio do CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, na Urca, onde fiz meu doutorado) poderia compreensivelente supor que por lá só existem 6 andares. Todos os gabinetes e salas identificados ficam entre o térreo e o sexto andar, que é até onde vai o elevador. Mas o uso judicioso de certas portas discretas de acesso às escadas de incêndio e, ocasionalmente, de grampos de papel engenhosamente torcidos, permite o acesso a um espaço que é melhor definido pelo que ele não é: o lado de fora pela parte de cima; onde se acomula toda a infra-estrutura (acro-estrutura?) que não poderia propriamente ficar dentro do prédio (antenas, para raios, caixas d'água, etc). Pois uma consequencia inescapável da orientabilidade da geometria do prédio é que, se gabinetes e salas de aula precisam ficar dentro deste último, limitadas acima por um teto, então necessariamente uma superfície horizontal externa deverá existir: um telhado.

O telhado em questão tem uma vista espetacular, interpolando panoramicamente a Praia Vermelha, o Pão de Açucar e a Marina da Glória. Um vista melhor, de fato, do que a de qualquer gabinete. Posso dizer que fiz boa parte do meu doutorado lá em cima, sentado sobre uma toalha mantida na minha sala com este expresso propósito e bebendo coca-colas enquanto lia artigos e fazia contas (ou conchilava). Era uma maneira agradável e produtiva de passar o dia. Mas é compreensivel que uma senhora, ao olhar através da janela de um prédio vizinho, chegasse a conclusões um tanto menos benignas, após me ver no topo de uma caixa d'água de concreto, alternadamente sentado contemplativamente de cabeça baixa, e indo e voltando quase até a beira,a passos lentos e de cenho franzido.

A vista do topo do meu prédio novo em Laranjeiras, embora agradável, é menos espetacular que a do CBPF. Mas pelo menos até agora ainda não fui confundido com um suicida. Mas é um espaço com um(a falta de) propósito idêntico. Tais espaços intersticiais surgem de forma emergente na interface de espaços que tem um propósito; eles não são planejados, mas são inevitáveis. Em lugares enfaticamente não planejados, tais como Londres, tais interstícios, quando marinados em aguns séculos de história, praticamente definem o traçado urbano. Vãos entre prédios se tornam becos, ruelas e ruas; e praças se formam em defeitos topológicos do traçado urbano (que é um palimpseto fóssil muito mais antigo que qualquer estrutura, e que em alguns lugares remonta a tempos romanos).

No rio, tais interstícios publicos e fosseis urbanísticos são mais sutis, mas me afetam as vezes até de maneira inconciente. Estou gostando muito do meu novo apartamento, e bairro. Tanto, de fato, que comecei a me perguntar porque. Em ambos os casos, a resposta parcial é que o espaço parece menos tolhido. No nucleo duro da zona sul, em Ipanema, Leblon e (principalmente) Copacabana, tudo parece brigar por espaço, tentando colocar mais gente e mais coisas no mesmo espaço limitado. Com mais ou menos primor, os prédios se expremem como passageiros no metro de Tóquio; a visada nunca consegue chegar muito longe sem ser interrompida. E este expremer constante não deixa lugar para história: construções, traçados e interstícios antigos não duram muito em tal ecosistema, e são rapidamente absorvidos por vizinhos em expansão ou novas construções, de modo que nem mesmo a sua memória é preservada.

Laranjeiras tem mais história e menos pressão.  A agua potável do rio Carioca atraiu os portugueses, que se estabeleceram por aqui antes mesmo de fundarem a cidade do Rio de Janeiro e quando Copa era um mangue remoto. De certa forma, embora ele esteja quase todo canalizado, o Carioca ainda define muito do traçado do bairro. Desta história  interstícios como o Parque Guinle, a General Glicério e o Largo do Boticário surgiram e foram preservados, assim como diversas ruelas de curioso traçado e predios interessantes.  Os prédios não são necessariamente maiores, mas são mais... espaçosos. É como se eles tivessem sido criados soltos, ao contrário dos prédios de cativeiro de Copa e redondezas.


2 comentários:

Amanda disse...

Hahahaha! Foram publicados uns "notes to self" ou é impressão minha?

Fiquei com vertigem só de ver a foto. Gente que tem medo de altura não pode se dar ao luxo de ter esses lugares de estudo/contemplação privados. Mas se algum dia você achar um bunker deserto e bom para estudos, pode me chamar! :)

|3run0 disse...

É... era para eu terminar hoje de manhã, mas para variar eu enrolei...

Bunker mesmo eu não conheço, mas tem uns cantos na UFRJ que tem um ar meio pós-apocaliptico.