LNAC, Rio de Janeiro
O Líbano subiu no telhado
O Líbano está agora em um estado incipiente de guerra civil. O conflito, inicialmente entre o governo e o Hizbollah, já começou a degenerar em alguns subúrbios de Beirute em conflito sectário entre xiitas e sunitas, mediado por tiros e RPGs (do tipo que se lança, não do que se joga).
Recapitulando muito rapidamente (veja mais aqui): Desde a última guerra entre Israel e Hizbollah, vem crescendo a tensão entre este último e seus aliados (conhecidos coletivamente como '8 de Março, e apoiados pela Siria e Irã) e o governo do primeiro ministro Siniora e agregados (i.e. 14 de março, apoiado pela Arábia Saudita, EUA e França). No ano passado, o mandato do então presidente Emille Lahoud acabou, e os dois lados foram incapazes de chegar em um consenso sobre um novo nome (em grande parte devido à pressão síria). O cargo está vago desde então. Pairando sobre tudo isto, fica o espectro do ex-primeiro ministro Hafik Hariri, que muito provavelmente foi assassinado pela Síria em 2005. O crime levou aos protestos e contraprotestos nos dias respectivos, das coalizões que se cristalizaram nas facções oposta de 8 de Março (xiitas e parte dos maronitas) e 14 de Março (sunitas, druzos e os demais maronitas). Como eu já disse algumas vezes antes por aqui, a própria guerra de 2006 contra Israel se insere neste contexto, no qual o Hizbollah tenta proteger seu status atual de estado-dentro-do-estado armado até os dentes, instigando guerrinhas que mantenham viva a ameaça israelense, justificando assim a continuidade da sua 'resistência'. De forma mais ampla, as duas facções libanesas se alinham em lados opostos na nova guerra fria emergente no Oriente Médio.
Mais recentemente, as lideranças do 14 de Março (e, em particular, o líder druzo Walid Jumblatt) começaram a pressionar o poder paralelo do Hizbollah. O estopim desta mais recente briga foi a demissão do chefe de segurança do aeroporto de Beirute, um aliado do Hizbollah que atende por General Wafik Shoukair; e a tentativa por parte do governo de assumir o controle de uma rede paralela de comunicações (fibra otica e WiMax, alto nível) mantida pelo Hizbollah.
A reação foi rápida. Em um discurso furibundo, o Nasrallah (lider do Hizbollah) acusou Israel, EUA, França, Arábia Saudita, e a mãe Joana, de conspirarem contra a resistência, e afirmou que as ações do governo (que ele chamou de 'governo Jumblatt') eram uma 'declaração de guerra'. Quase imediatamente, membros armados do Hizbollah e Amal (outra milicia xiita) surgiram nas ruas de Beirute, e bloquearam a estrada para o aeroporto. Fontes locais afirmarm que uma emissora controlada pelos Hariri foi tirada do ar, a sede de um jornal pró-governo e anti-sírio foi queimada, e a casa de um parlamentar proeminente da situação foi cercada por milicianos. Por toda Beirute, membros do Hizbollah e Amal trocam tiros e foguetes com uma melange de grupos sunitas, maronitas e drusos.
O exército libanês, com medo de se fraturar, prefere ficar quieto e fingir que não tem nada a ver com o assunto, e a liderança do 14 de Março faz discursos chorosos pela unidade nacional e age como o Sir Robin. Aparentemente o Hizbollah já controla boa parte da cidade. O premiê Siniora tomou chá de sumiço, e tanto Hariri Jr. (Saed, filho do assassinado Rafik) quanto Jumblatt agora estão tentando sem muito sucesso por panos quentes e aplacar Nasrallah.
Com a vaca fixando residência e criando família no brejo, a situação no Líbano hoje lembra muito os primórdios da guerra civil, em meados da década de 70. A lealdade ao clã/secto/etnia é mais importante do que a lealdade ao estado (o Líbano como estado nação sempre foi em grande parte uma farsa consensual, e só funcionou na medida em que a todos os lados interessava manter a fachada), o que leva as várias facções a preferirem encontrar aliados e patronos externos a resolverem internamente suas disputas. Mas se por um lado isto é assustador, por outro a própria lembrança do cataclismo passado provavelmente é um excelente dissuasivo para que os vários lados não o repitam no futuro.
A curto prazo, o Hizbollah parece estar a ponto de controlar Beirute, e a intimidar ou mesmo derrubar o governo. Mas a longo prazo, se o 14 de Março não emular a estratégia francesa em 1940, é bem possível que Nasrallah tenha novamente mordido mais do que consegue mastigar. Depois dos eventos dos últimos três dias, é improvável que os libaneses não-xiitas voltem a ver o Hizbollah como uma força de resistência legítima (a legitimidade foi conquistada após o 'partido de Deus' ter forçado a retirada israelense do sul do pais, em 2000), ainda mais agora que a promessa tantas vezes repetida de jamais voltar as armas da 'resistência' contra os outros libaneses foi quebrada. E como a história da guerra civil demonstra, dominar os redutos druzos e maronitas que cercam Beirute e separam as zonas de maioria xiita no sul e no vale de Bekka vai ser muito mais difícil do controlar (a maior parte de) Beirute (c.f. esta entrevista de um Walid Jumblatt que parece ter reencontrado seus testículos). De qualquer maneira, a situação ainda é incerta demais para enterdermos o que exatamente está acontecendo; ficar fazendo previsões a longo prazo então é um exercício de euachismo na mesma categoria de futilidade que mesas redondas de futebol.
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