LNAC, Rio de Janeiro
Tibet, autocracia e respeitabilidade
Hoje, São Francisco parece tomada por uma estranha campanha publicitária, assim como o foram, na semana passada, Londres e Paris. Em conjunção com a passagem da tocha olímpica, promoters em vestes alaranjadas oferecem um tal de 'Tibet Grátis' à transeuntes e membros da imprensa. Não sei bem se Tibet é acesso à internet, uma marca de ringtones ou algum tipo novo de biscoito; mas o governo chinês, provavelmente ofendido com tal exemplo de crasso comercialismo, obviamente não gostou da promoção...
Poderíamos discutir se o Tibet já foi, ou deve ser, independente, ou se o Dalai Lama é a reencarnação do Buda ou uma versão em robes laranja do Walter Mercado. O que é indiscutível é que a China ocupou, e ocupa, o Tibet, com base na força, e não no consentimento, mesmo que implícito, dos tibetanos. Durante o governo Mao, as táticas para tanto eram bastante, digamos, diretas. Incluíam queimar monastérios, coletivizar a agricultura e matar gente de fome, e matar ou mandar para campos de reeducação quem reclamasse, parecesse que poderia vir a reclamar, ou não demonstrasse o entusiasmo devido pelo projeto civilizatório maoista. Mesmo em 1989, os eventos que culminaram no massacre da Praça da Paz Celestial tiveram sua origem em disturbios (reprimidos com a delicadeza usual) em Lhasa dois anos antes (loonga história).
Nas últimas décadas, a estrategia chinesa tem se tornado mais sutil (mas o entusiasmo por sessões de 'reeducação continua). Por um lado, Pequim promove um crescimento acelerado do Tibet e outras regiões limítrofes, na esperança (bem fundamentada, e até certo ponto louvável) de que a prosperidade crescente esfrie os ânimos separatistas. Por outro, estabelece milhões de colonos han, que formam uma base de poder leal ao governo central, e diluem demograficamente a maioria tibetana etnica. Ao mesmo tempo, promove valores nacionalistas chineses, e denigre a cultura local como atrasada, e o budismo tibetano como superstição (feudalismo e reverência por deuses vivos certamente são ideias anacrônicas; mas ser maoista hoje em dia tampouco é um ato racional).
Os distúrbios recentes no Tibet já foram comentados quase a exaustão blogosfera afora. Noto assim somente dois pontos salientes.
Primeiro: pela primeira vez desde 1959, os protestos dos tibetanos foram violentos; chineses Han (e, em menor medida, Hui, uma grupo muçulmano também minoritário) foram queimados em suas lojas ou espancados de forma brutal. Até recentemente, para o seu eterno crédito, o Dalai Lama manteve seu movimento estritamente não-violento. A violência, aparentemente advinda de uma liderança mais jovem e impaciente, não é ruim somente pela destruição que provoca, mas também porque os tibetanos, se seguirem por este caminho, correm o risco de verem suas aspirações nacionais legitimas (seja por independência, seja por autonomia) submersas pelo mesmo tipo de paroxismo auto-destrutivo que vitimou e vitima e.g., Chechenos, Sérvios e Palestinos.
O segundo ponto de certa maneira ajuda a entender o primeiro: Fora de Lhasa (a capital), praticamente todos os distúrbios ocorreram não na chamada 'região autônoma do Tibet', mas sim nas áreas que foram desmembradas do Tibet histórico e incorporadas às províncias vizinhas pelo governo de Pequim. São regiões que, embora historicamente populadas por Tibetanos, têm hoje maiorias da etnia Han (majoritaria na China). Em Lhasa, os Han detem a maior parte do poder econômico, e a quase totalidade do poder político. Pelas razões apresentadas acima, cultural e demograficamente, a nação tibetana corre o risco de desaparecer em uma ou duas gerações, exceto como uma atração turística pitoresca. A violência anti-Han ocorreu exatamente onde este processo está mais avançado.
Por pior que seja esta situação para o Tibet, porém, os instrumentos usados pelo governo para controlar a população não são substancialmente diferentes daqueles usados no resto da China. Ao contrário dos anos de chumbo (chumbo é pouco, matéria degenerada de neutrons é um nome mais adequado para o auge da revolução cultural), existe hoje na China algum nível de liberdade de opinião e religião; desde que aquela não questione o sistema vigente ou cause-lhe algum embaraço, e esta seja absolutamente apolítica e subserviente ao estado. Quando os objetivos da população e do governo estão razoavelmente alinhados (i.e., ganhar dinheiro), como é o caso da maior parte nos grandes centros no leste do pais, esta liberdade-potemkim não cria grandes atritos. Mas quando as aspirações de um grupo se chocam frontalmente com o que determina o governo, ela se torna paródia da coisa real, e só cria mais instabilidade.
O que me parece claro com isto tudo é que o problema da China não é simplesmente a falta de liberdade no Tibet. É falta de liberdade na China inteira, incluindo, mas não limitada ao, Tibet. Neste sentido, as Olimpiadas em Pequim tem como propósito de servir como um 'baile de debutante', (re)apresentando a China à comunidade das nações. O partido comunista chines quer que a China seja reconhecida como uma grande potência, o que é razoável. Mas também busca a anuência tácita de que seu sistema político é tão legítimo quanto a democracia representativa
De fato, está é uma questão que transcende até a própria China. Ditadores e autocratas pelo mundo afora adorariam se a repressão sutil (com a ameaça implícita de que o bicho pega se as coisas saírem do controle), combinada com parâmetros do debate permissível cuidadosamente circunscritos, se tornasse uma forma 'respeitável de se governar um pais. De fato, na própria América Latina, há quem prefira regimes onde há mais ordem e ação, e menos discussão e politicagem, tais como (supostamente, e dependendo de preferências ideológicas) o Chile de Pinochet ('Uma economia moderna! Nenhum governo eleito seria capaz de implementar as reformas necessárias'), ou a Cuba de Fidel ('Saúde pública de qualidade! As elites locais nunca permitiriam isto em uma democracia burguesa'). Curiosamente, os dois grupos, por razões diferentes, apontam a China como um exemplo bem sucedido de uma autocracia esclarecida.
2 comentários:
De onde veio a foto destes dois juntos? -- Mo
Era da época em que o Allende era presidente, e o Pinochet, supostamente leal. A foto mesmo eu achei no google images, clique nela para ir para página de onde peguei 'emprestado'
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