Estação ferroviária, Halmstad, Suécia
Imprevistos e improvisos
Terminada a
FENS em Copenhagen, fui pedalar. Para o norte, ao longo da costa leste da
(velha) Zeländia. Até a Helsingor dinamarquesa, e de lá por balsa até a sua
imagem no espelho, a Helsingborg sueca, nos arredores da qual fica a fazenda em
que me hospedaria (couchsurfing!).
Fui na FENS pela manhã. A saída de Copenhagen foi no começo da tarde, atrasado
pela mesma chuva insistente que não deu trégua durante toda a semana. Parti
finalmente sob chuvisco; mas antes de sair da cidade um vento norte forte, que
iria continuar durante todo o dia, limpou as nuvens. Isto tornou o passeio ao
mesmo mais agradável (mais seco e fotogênico) e mais penoso (pedalar contra o
vento é como subir um morro pouco íngreme, mas que nunca acaba).
O cascalho deve ser só neste trecho |
A parte
dinamarquesa do caminho inicialmente segue pelo litoral, ao longo de uma
auto-estrada, até se separar em uma via dedicada, passando por florestas e
vilas pitorescas com telhados de sapé. Após uma breve viagem de balsa (e um
novo amigo de facebook e um sanduiche de salmão defumado depois), e cheguei em
Helsingborg, uma cidade de aparência agradável, mas que vi só de passagem. Uma
dúzia de quilômetros em estradas rurais depois, cheguei na fazenda da simpática
família que iria me hospedar: Andreas, Julia e seu filho Alexander de 7 meses.
Uma janta, algumas horas de conversa agradável e uma noite bem dormida em cama
macia depois, era hora de continuar viagem. Acompanhado pela Júlia pelos
primeiros quilômetros (alguns meses de ser mãe em tempo integral em uma zona
rural,
O cascalho deve recomeçar logo após estas pedras... |
qualquer desculpa para sair de casa é bem-vinda), o plano do dia era
seguir através de uma península até o farol de Kullen, a porta de entrada do mar Báltico,
que tem existido de uma forma ou de outra desde o século XIII (anteriormente, e
ocasionalmente posteriormente, os locais se sustentavam saqueando naufrágios).
O gps me mandava seguir pela estrada que subia suavemente pela espinha central
da península. Mas havia uma alternativa possivelmente mais agradável, segundo o
mapa: Uma pequena trilha de dois quilômetros beirando a praia, que se liga a
estrada principal através de uma conexão perpendicular já bem mais próximo do
farol. Era só pegar um desvio em direção ao mar por alguns quilômetros.
Começando
em um balneário local, a trilha começa como uma estreita faixa de asfalto a
poucos metros do mar. Paisagem de fato agradável... Mas em breve o asfalto deu
lugar ao cascalho. Que foi ficando mais grosso e irregular. Só mais um
quilômetro, pensei. Não pode ser tão ruim...
Esta trilha não foi feita com bicicletas em mente... |
O cascalho acabou em uma picada de pedras irregulares; as rodas da bicicleta
escorregavam e era preciso descer e empurrar. Mas com certeza eu
retornaria ao cascalho em breve... Certamente não havia como piorar.
As pedras
iam se tornando mais irregulares, e a tal trilha neste ponto era mais uma
sugestão otimista do que uma via trafegável. Eu me atinha a crença de que
encontraria algo mais pedalável após cada curva e pedra. Foi neste estado de
espirito em que cheguei na primeira escada escavada na rocha.
Passei os
próximos 30 minutos com a bicicleta e toda a minha bagagem nos ombros, subindo
laboriosamente cada degrau e tentando manter sob controle a decida de cada
barranco, sob o olhar curioso dos ocasionais transeuntes que faziam o percurso
sensatamente a pé.
Após
enriquecer o vocabulário em português destes últimos com alguns comentários,
digamos, contundentes sobre a sua geografia local, finalmente cheguei até um
café a beira de praia. Uma praia com uma história um tanto escandalosa,
descobri, tendo sido o primeiro lugar na Europa em que homens e mulheres podiam
se banhar (vestidos!) juntos. A infâmia era tanta que aparentemente alguns dos
visitantes seguiam pela minha trilha até a vila seguinte para que suas cartas
não tivessem o carimbo dos correios de tão notório antro de corrupção carnal.
%$¨%#$! |
Do café uma estrada asfaltada seguia até a crista da península, subindo em
algumas centenas de metros tudo que a estrada principal sobe em alguns quilômetros.
Mas pelo menos era a bicicleta a me carregar, e não o contrário.
A chegada
ao farol foi, comparativamente, de uma tranquilidade parnasiana. O céu azul e o
mar escuro sob o penhasco combinavam agradavelmente. Andei pelas pedras e
cavernas, subi no farol, tomei sorvete e me preparei para partir de novo. A
parte difícil estava para trás; com o vento nas costas e seguindo um caminho
que mais descia que subia, fui pedalando na direção de Angelholm.
O sol brilhava, a brisa soprava e os pássaros cantavam quando, a 27 km da
cidade, o aro traseiro da minha bicicleta decidiu se desintegrar. Desgastado
por uma pastilha de freio já avançada em idade, cuja borracha havia adquirido a
consistência de chiclete após uma semana de operação quase aquática na chuvosa Copenhagen,
o aro se partiu em dois ao longo de sua linha média lateral. Eu viajo preparado
para consertar quase tudo que pode dar errado em uma bicicleta; mas soldar
alumínio ou carregar um disco de 40 cm de diâmetro como sobressalente é além do
que sou capaz.
É uma ribanceira, mas pelo menos é asfaltada... |
Consegui pelo menos tornar a bicicleta empurrável (mulo de carga nunca mais!),
e fui seguindo a estrada até encontrar pessoas. Mediante pedido, uma senhora
(bibliotecária aposentada, e nova amiga de Facebook) que passeava com o
cachorro me deu uma carona até a loja de bicicleta de Hoganas, onde morava. A
loja não tinha um aro do tamanho que eu precisava (podia encomendá-lo em
uma semana!); mas em Angelholm era mais provável que eu tivesse sorte.
Fui de ônibus até lá. Já era tarde, e fui direto para a casa da minha host de
couchsurfing, uma simpática hiponga da região. Na manhã seguinte, fui até a
loja de bicicletas local. Eles tinham o aro, e o conserto ficaria pronto no
final da tarde seguinte.
Fui para a
cidade seguinte, Halmstad, de trem (as cidades são todas muito próximas, ainda
mais pelo caminho direto dos trilhos, se comparado com o costeiro da ciclovia).
Conheci a cidade e fui relaxar na praia, antes de me encontrar com o meu host
local, um professor de artes márcias e movimento, antes de voltar para Angelholm para recuperar minha bicicleta. Mas me confundi quanto ao
horário de fechamento da loja. Já não havia
vivalma por lá. Era 6ª, e ela só reabriria na 2ª.
A praia escandalosa! |
Fui salvo
pela minha host, que fez um crowdsourcing no FB até encontrar o número do
celular do dono da loja. Não entendi a conversa que se seguiu entre os dois, em
sueco, exceto pelas ocasionais menções a ‘brasiliansk’ e ‘Londonisk’, ou algo
assim. Mas o resultado final é que o mecânico da loja, um simpático kosovar
chamado Benny, foi abrir a loja as 8 da noite, para que eu pudesse seguir
viagem.
Preciso me lembrar de levar equipamento para solda em alumínio na próxima viagem... |
Na manhã
seguinte pedalei definitivamente até um pouco além de Halmstadt, passando por
Bastad, onde comprei e comi um piquenique pantagruelesco. O meu host me ensinou
a preparar panquecas de banana, e conversamos sobre neurociência e artes
marciais. Com todo o drama com a bicicleta, acabei perdendo um dia de ciclismo,
mas não reclamo. Este tipo de contratempo faz parte deste tipo de viagem, e
apesar de tudo as experiências resultantes foram interessantes, mesmo que
inesperadas. Quando se viaja sozinho para um pais novo, e propelido pelas
próprias pernas, é preciso estar pronto para o inesperado, e para se virar para
resolver eventuais problemas que surjam pelo caminho. E, de qualquer forma, eu
estava na Suécia, não no vale de Korenghal. O pior que poderia ter acontecido
teria sido ser obrigado a chamar um Uber.
PS: No dia seguinte peguei um trem de volta a Copenhagen, de onde voei para Londres,
e de lá para Newcastle, onde estou agora. Sem nenhum contratempo. Fico por aqui por 11 dias,
trabalhando em uma colaboração científica.
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