sábado, 2 de maio de 2009

Sítio da Júlia, Morro Vermelho
Resistere nugatorium est

Estou aqui em retiro pani-etílico-espiritual com diversos outros físicos, para comemorar os 10 anos da turma de 1999 da Física/UFMG. Não, não é a minha turma, mas é dai? Festa é festa. Da minha parte, encontrei um monte de gente que não via a tempos, e me lembrei porque gosto tanto deste povo. Ajudei o Breno a fazer pão e a Indira a subir no telhado, e discuti com o Costela os paralelos (surpreendentemente próximos) entre redes neurais e o modelo de Ising com uma definição generalizada de primeiros vizinhos. De forma mais geral, os eventos até agora, de forma absolutamente típica, oscilaram entre o inacreditável e o impublicável, então não vou escrever mais a respeito, pelo menos até aparecerem fotos. Mas entre um copo de coca e outro os meus pensamentos começaram a divagar, o que me leva naturalmente ao seguinte:

O príncipe Pirro, de Épiro, já havia sido comparado a Alexandre, o grande, devido a aparência física, habitos festeiros e habilidades militares de ambos. Quando aportou em Taranto, na Itália, com seu altamente eficiente exército de armas combinadas semelhante aquele com que os macedonios conquistaram todo o mundo conhecido ao leste da Grécia, provavelmente achou que o oeste seria ainda mais fácil. Na Itália, tinha pela frente somente algumas cidades estados na Etrúria, tribos montanheses esparsas no Apeninos, e uma peculiar cidade no vale do Laccio, pouco renomada mas com a fama de belicosa. Uma tal de Roma.

Na primeira batalha, as coisas correram bem para Pirro. Seus elefantes colocaram em fuga as tropas romanas. Os lideres destas últimas foram mortos, e os remanecentes de seu exército ('legiões', na sua peculiar nomeclatura) por pouco escaparam da aniquilação. Pirro continuou marchando, para receber a esperada rendição da cidade... E encontrou outro exército, idêntico ao anterior. A batalha subsequente foi renhida. Os tais romanos haviam adaptado suas táticas. O exército epirota sofreu grandes perdas antes de finalmente vence-los, e o nome de Pirro ficou para sempre associado a este tipo de custosa vitória tática que não leva a vantagens estratégicas. Porque enquanto aos epirotas após as duas batalhas faltavam homens para guarnecer suas conquistas e continuar a campanha, as cidades conquistadas por Roma se encarregavam elas mesmas de fornecer homens para formar um terceiro exército, idêntico aos anteriores, mas um pouco mais adaptado para enfrentar seus novos inimigos. Roma não simplesmente conquistava seus inimigos, ela os assimilava. Piro se lembrou que havia deixado o forno ligado lá em Épiro, e pegou o primeiro navio de volta.

Algo semelhante aconteceu durante a primeira guerra púnica (contra Cartago, cidade de origem fenícia no norte da África). Roma não tinha absolutamente nenhuma tradição náutica, enquanto Cartago era a potencia naval dominante no Mediterraneo ocidental. Mas uma briga pelo controle da Sicília forçou os romanos a contruirem, a um grande custo, uma frota. Que foi prontamente afundada pelos calejados cartagineses. Os romanos construiram então uma segunda frota. Que afundou em uma tempestade. E uma terceira. E uma quarta. Com cada frota que perdiam, aprendiam um pouco mais. E construiam outra. Até que, eventualmente, os romanos adaptaram um tipo de gancho ('corvus') com o qual podiam prender o o costado dos navios inimigo de encosto aos seus, transformando uma batalha naval de manobra em uma batalha terrestre sobre uma plataforma flutuante, mas estática. As mesmas espadas (gládios, adaptadas da Espanha) que causaram tanto estrago junto aos epirotas fizeram rapidamente sashimi cartaginês, e os romanos tiveram sua primeira vitória naval. Em pouco tempo, os catarginese pediram a paz. A Sicilia era romana.

Na segunda guerra púnica, Roma enfrentou um dos maiores gênios militares do mundo antigo, Anibal, que inflingiu seguidamente derrotas acachapantes às legiões. Mas, novamente, após cada derrota Roma produzia de alguma forma um novo exército, e aprendia um pouco mais. Até que, finalmente (e estou pulando uma história bastante complicada, c.f. a 'História' de Políbio), em Zama, a algumas léguas de Catargo, um exercito romano sob o comando de Scipio Emiliano venceu o exército de Aníbal. Cartago foi completamente derrotada, e perdeu sua frota e suas colônias. A terceira guerra púnica foi quase um anti-clímax; o senado romano decidiu simplesmente que Cartago, embora não oferecendo qualquer perigo imediato, poderia concebivelmente causar problemas no futuro. Cartago precisava ser destruida. Cartago foi, portanto, destruida. Algumas gerações depois, uma cidade planejada, ao estilo romano, foi construida no lugar.

O ponto saliente a respeito desta história não é afirmar que a Roma republicana era uma cidade totalmente psicopata (embora isto seja verdade também), mas sim demonstrar a sua capacidade única de se adaptar após suas derrotas, e de assimilar seus inimigos. Estes últimos poderia vencer de primeira, e de segunda, e de terceira. Mas os romanos não paravam, não desistiam, não mudavam de ideia. Os romanos continuavam vindo, se adaptando ao que quer que fosse jogado contra eles, até que seus inimigos fossem vencidos, conquistados e assimilados. Algumas gerações depois, os netos dos derrotados marchavam novamente, desta vez sob as águias das legiões, como cidadãos romanos ou ao caminho de sê-lo.

Os romanos eram os Borg da idade do ferro. Não tinham laseres na cabeça, e formavam quadrados de infantaria, não espaçonaves cúbicas. Mas o princípio de ambos era o mesmo. Avançar inexoravelmente, se adaptar, e assimilar. Resistere nugatorius est, diriam.

Roma, até onde eu sei, não era uma hive-mind cibernética. Mas era uma república com uma noção ampliada da antiga cidade-estado, onde aos conceitos de cidadania, e as concomitantes responsabilidades e liberdades cívicas, eram extensiveis (eventualmente, mas certamente não automaticamente) aos povos conquistados. Esta era a grande diferença entre o império romano e (por exemplo) o império marítmo ateniense. Enquanto no primeiro celtas e macedônios
podiam aspirar a eventual cidadania, no último nem mesmo gregos livres de outras cidades podiam, exceto em circumnstâncias excepcionais, jamais se tornar atenienses.

No final, Roma não caiu porque foi soterrada por uma maré bárbara, mas porque ao longo do império o velho militarismo cívico foi se esvaindo, enquanto instituições e valores republicanos eram substituidos por um despotismo mais tradicional. Ser um cidadão romano, a base da república, perdeu seu significado, e seus atrativos. Quando imperadores divinizados se alternavam como presidentes-perpétuos em uma republica de bananas, e o senado e magistrados eram puro mis-en-cene decorativo, lutar por Roma era uma questão para soldados profissionais cada vez mais indistinguíveis de mercenários, e leais a seu soldo, não à abstrações cívicas vazias.

Durante a 2a guerra púnica, a república romana teve um exercito destruido em Cannae, e prontamente produziu outro. Em Adrianópolis, uma derrota igualmente acachapante para a cavalaria Gótica* levou o império a efetivamente se render (subornando os Godos para que não saqueassem Constantinopla) e a abandonar o formato de legiões centradas na infantaria (onde cidadãos livres marchavam em formação e dependiam de um do outro para proteção) por outras menores centradas em cavalaria (onde nobres cavalgavam juntos mas tinham meios indendentes de picar a mula se o bicho pegasse). Se passariam quase mil anos antes que alguma força de infantaria europeia fosse capaz de enfrentar e vencer um ataque de cavalaria (apropriadamente, quadrados de lanceiros suiços, cidadões livres de cantões independentes). Quando Atila (o Huno, em oposição, suponho, a Átila, o Coreano) estava as portas de Roma, a cidade de 500.000 habitantes não foi capaz de produzir um exército de cidadãos para defende-la. O Papa da época acabou salvando o dia, e Roma não caiu neste dia. Mas a republica romana já estava morta e enterrada havia muito tempo.


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* I.e., formado por godos, não por adolecentes soturnos com maquiagem preta.

5 comentários:

Catão disse...

Ei, cuidado com esses comentários sobre Coca-Cola, pode pegar mal para os presentes bebendo as 1000 latas de cerveja enfiadas no gelo.
Ah, e você trocou Cartago por Catargo. Não sei se você estava tentando fazer uma catarse, mas por motivos pessoais eu tinha de comentar isso. "Delenda est Cartago"

|3run0 disse...

Eu nunca acerto o nome desta cidade maldita. Sinceramente, acho que o seu xará tinha razão com todo aquele papo de delenda isso ou aquilo; prefiro cidades com nomes mais pronunciáveis. De qqr maneira, corrigi o erro.

Quanto a coca-cola, acho que se esses meus habitos fossem ofender alguem da física/UFMG eu já teria sido escorraçado do ICEX vários anos atras.

Breno disse...

Continuando na linha dos equivocos com cidades, o sítio da Júlia é em Morro Vermelho, distrito de Caeté.

|3run0 disse...

Errrr....

|3run0 disse...

É engraçado que eu consiga escrever sobre as guerras púnicas de cabeça, mas não me lembre do nome da cidade onde estou...