sábado, 21 de julho de 2012

Hostal del Ripolles, Ripoll
Um Cântico para Vilfredo

Começos são sempre arbitrários. São necessários, porém, para se contar uma história. A da Catalunia, podemos convencionar, começa no século IX, com os esforços de um potentado local para repopular e unificar a devastada região de fronteira entre os reinos mouros e o imperio carolingeo. Vilfredo, conhecido em proporções desconhecidos de afeto e sarcasmo, como 'o Cabeludo' (Guifré el Pilós), era um nobre de modestas posses quando foi nomeado conde de Barcelona e carcanias. O imperio de Carlo Magno se fragmentava, os mouros se retraiam, e ele viu ai a sua chance.

Ripoll se situa no ângulo entre dois rios de margens abruptas. A combinação de acessibilidade  e defensibilidade certamente figuraram no cálculo mental do hirsuto conde, que aqui fundou o monastério de Santa Maria de Ripoll. Em uma época iletrada e politicamente fragmentada, onde o tráfico de bens e informação era difícil e perigoso, e a Pax Romana era uma memória distante já assumindo ares de mito, um monstério era muito mais do que um retiro espiritual (como qualquer um que tenha lido 'Um Cantico para Leibowitz' sabe). Como o único repositório do saber escrito da região, o monastério adquiriu um poder muito maior e mais duradouro do que o advindo de qualquer exército feudal; não um poder sobre pessoas ou territórios, mas sobre informação.

Uma 'idade das trevas' não surge porque os recursos humanos e físicos nescessários para uma civilização coesa deixaram de existir, mas sim porque eles deixaram de ser aplicados de forma coordenada. A ausência de normas culturais e tradições em comum que simplificam e tornam seguros o comércio e o intercambio de ideias transforma vizinhos em estranhos, e atrofia o universo mental a aquilo que é delimitado pelo horizonte e por laços de sangue. Este processo de fragmentação vinha ocorrendo na Europa em geral, e na Catalúnia em particular, desde que os romanos penduraram as chuteiras. Em graus variados de desagregação sob os vários reinos sucessores, dos vândalos, godos e francos, a região era como um conjunto de redes, cada um operando sob os seus próprios protocolos, mas mal se comunicando entre sí. O monastério foi o TCP/IP que unificou todas as redes, o nodo central de um eventual backbone que a partir dele se propagou como pequenos esporos monásticos até povilhar a região de um rede interligada monastérios e conventos. Esta rede criou uma lingua franca cultural baseada no cristianismo monástico ancorado no poder da língua escrita, e protegida por grossas paredes e o braço peludo de um poder secular mais esclarecido. Registros dinásticos eram mantidos, transações comerciais eram registradas e tradições eram propagadas. Aos poucos, a Catalúnia voltou a vida. 

Tenho que terminar aqui porquê preciso desocupar o quarto do hotel antes que a proprietária ponha a porta abaixo. Daqui parto para Olot, cidade conhecida pelas dezenas de vulcões inativos nas redondezas. Chego lá através de Sant Joan de la Abadessa, onde fica um convento fundado pela formidável filha de Vilfredo, o peludo (Santa Emma), e por um passe montanhoso a 1070m de altitude chamado Coll de Santigossa.

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