quarta-feira, 29 de junho de 2011

Lareira, Hotel Orotour, Campos do Jordão
Idílio Paleolítico

Estou em Campos do Jordão, para mais um 'Nova Física do Espaço' (o décimo ao todo, e quarto de que participo). Está fazendo um frio glacial, o que torna particularmente agradável a lareira sobre cujo ombreira estão os meus pés. Agora a pouco um grupo de chorinho (quase) exclusivamente feminino, o 'Choro de Saia' estava tocando; uma delas é casada com um pesquisador do Inpe (o Alex, que arranjou algumas das músicas).

Antes da música, eu estava tendo um dia bastante paleolitico. Depois de apresentar o meu trabalho pela manhã (o que transcorreu muito bem), eu e o Reza (o meu colaborador britânico de origem iraniana) passamos as três horas seguintes subindo morros e percorrendo trilhas. De volta ao hotel, depois de trabalhar um pouco, comi quantidades industriais de carne mal passada em um churrasco organizado pelo evento. Reavivei então a lareira com pilhas de lenha e uma afanação vigorosa com programa do Nova Física. Realmente, é um estilo de vida bem neandertal este que consiste em perambular por matos e morros, comer carne quase crua e acender fogos crepitantes*. Eu estava a ponto de tacapear alguma transeunte randômica mais apresentável, quando o chorinho começou. Este teve um profundo efeito civilizatório em mim, e me lembrei o suficiente de 20000 anos de evolução cultural para escrever neste blog.

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* As duas últimas atividades são o que permitiram nossos antepassados (a partir do Homo Erectus, que primeiro fez uso do fogo) terem cérebros grandes e metabolicamente caros; se tivessemos que subsistir da alimentação dos gorilas (sem cozimento, sem carne), precisariamos de passar mais de 12 horas por dia comendo só para não morrer de fome.

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segunda-feira, 20 de junho de 2011

Casa, Rio de Janeiro
Interstícios

"Você não vai pular não, vai?" - me perguntou o segurança assim que a sua cabeça, de onde saltavam dois olhos esbugalhados de medo, surgiu por sobre o parapeito. Não, eu não me sentia particularmente suicida e não tinha a menor intenção de descer os sete andares do CBPF em queda livre, eu assegurei a ele. "Estou só estudando", disse. "Então é melhor você estudar em algum lugar menos visível" -  retrucou o guarda, um tanto aliviado - "Esta caixa d'água é muito exposta, e os vizinhos dos prédios a frente podem se assustar com você ai".

Um visitante ocasional ao prédio do CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, na Urca, onde fiz meu doutorado) poderia compreensivelente supor que por lá só existem 6 andares. Todos os gabinetes e salas identificados ficam entre o térreo e o sexto andar, que é até onde vai o elevador. Mas o uso judicioso de certas portas discretas de acesso às escadas de incêndio e, ocasionalmente, de grampos de papel engenhosamente torcidos, permite o acesso a um espaço que é melhor definido pelo que ele não é: o lado de fora pela parte de cima; onde se acomula toda a infra-estrutura (acro-estrutura?) que não poderia propriamente ficar dentro do prédio (antenas, para raios, caixas d'água, etc). Pois uma consequencia inescapável da orientabilidade da geometria do prédio é que, se gabinetes e salas de aula precisam ficar dentro deste último, limitadas acima por um teto, então necessariamente uma superfície horizontal externa deverá existir: um telhado.

O telhado em questão tem uma vista espetacular, interpolando panoramicamente a Praia Vermelha, o Pão de Açucar e a Marina da Glória. Um vista melhor, de fato, do que a de qualquer gabinete. Posso dizer que fiz boa parte do meu doutorado lá em cima, sentado sobre uma toalha mantida na minha sala com este expresso propósito e bebendo coca-colas enquanto lia artigos e fazia contas (ou conchilava). Era uma maneira agradável e produtiva de passar o dia. Mas é compreensivel que uma senhora, ao olhar através da janela de um prédio vizinho, chegasse a conclusões um tanto menos benignas, após me ver no topo de uma caixa d'água de concreto, alternadamente sentado contemplativamente de cabeça baixa, e indo e voltando quase até a beira,a passos lentos e de cenho franzido.

A vista do topo do meu prédio novo em Laranjeiras, embora agradável, é menos espetacular que a do CBPF. Mas pelo menos até agora ainda não fui confundido com um suicida. Mas é um espaço com um(a falta de) propósito idêntico. Tais espaços intersticiais surgem de forma emergente na interface de espaços que tem um propósito; eles não são planejados, mas são inevitáveis. Em lugares enfaticamente não planejados, tais como Londres, tais interstícios, quando marinados em aguns séculos de história, praticamente definem o traçado urbano. Vãos entre prédios se tornam becos, ruelas e ruas; e praças se formam em defeitos topológicos do traçado urbano (que é um palimpseto fóssil muito mais antigo que qualquer estrutura, e que em alguns lugares remonta a tempos romanos).

No rio, tais interstícios publicos e fosseis urbanísticos são mais sutis, mas me afetam as vezes até de maneira inconciente. Estou gostando muito do meu novo apartamento, e bairro. Tanto, de fato, que comecei a me perguntar porque. Em ambos os casos, a resposta parcial é que o espaço parece menos tolhido. No nucleo duro da zona sul, em Ipanema, Leblon e (principalmente) Copacabana, tudo parece brigar por espaço, tentando colocar mais gente e mais coisas no mesmo espaço limitado. Com mais ou menos primor, os prédios se expremem como passageiros no metro de Tóquio; a visada nunca consegue chegar muito longe sem ser interrompida. E este expremer constante não deixa lugar para história: construções, traçados e interstícios antigos não duram muito em tal ecosistema, e são rapidamente absorvidos por vizinhos em expansão ou novas construções, de modo que nem mesmo a sua memória é preservada.

Laranjeiras tem mais história e menos pressão.  A agua potável do rio Carioca atraiu os portugueses, que se estabeleceram por aqui antes mesmo de fundarem a cidade do Rio de Janeiro e quando Copa era um mangue remoto. De certa forma, embora ele esteja quase todo canalizado, o Carioca ainda define muito do traçado do bairro. Desta história  interstícios como o Parque Guinle, a General Glicério e o Largo do Boticário surgiram e foram preservados, assim como diversas ruelas de curioso traçado e predios interessantes.  Os prédios não são necessariamente maiores, mas são mais... espaçosos. É como se eles tivessem sido criados soltos, ao contrário dos prédios de cativeiro de Copa e redondezas.


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sábado, 11 de junho de 2011

Hotel Amerian, Puerto Iguazu
Érre xê


Ontem, terminado o congresso, eu e a Mari (da Física/UFMG) alugamos um carro para uma excurção mercosúlica. A ideia era passar por várias ruinas Jesuitas, na Argentina e Paraguay, e voltar hoje. Para uma viagem organizada as pressas, consegui elaborar um roteiro bastante detalhado, e li bastante sobre a história das missões jesuítas. A única coisa que não fiz foi verificar quais os procedimentos de entrada na Argentina. Mercosul, pais irmão e tal, me lembro de decidir levar só a carteira de motorista, e não o passaporte ('levo a carteira de motorista, e corro menos risco no Paraguai...' - pensei). Depois de uma pequena celeuma desinteressante com a administração do hotel do congresso, fomos ao aeroporto e pegamos o carro. Tudo verificado, atravessamos a fronteira. Para dirigir além de Puerto Iguazu, me informaram, era preciso solicitar um 'permisso' na alfândega. Solicitei, portanto, o permisso. Entreguei os documentos do carro e minha carteira de motorista. "Ond essta seu érre xê?" - me perguntou a policial argentina. "Na parte de baixo do documento em suas mãos" - respondi. "Naao, carteera de mótorissta naao vale. Só o érre xê". Alguma iterações deste discussão depois, finalmente consegui entender que, sem meu documento de RG ou meu passaporte, eu não poderia ir além de Puerto Iguazu. Saco. Saco ao quadrado. Saco^Saco. Eu tenho que dizer que passei algum tempo me sentindo (e agindo) como uma criança para quem o natal não veio.

No final, o dia se acertou. Trombamos com outros três colegas expatriados na churrascaria em que almoçamos, e fomos todos juntos nas cataratas do lado argentino, onde eu passei de barco (e me enxarquei) praticamente embaixo das quedas d'água. (dois dias antes eu já havia ido a margem brasileira). São dois passeios que valem a pena; no lado Brasileiro pela vista (pense na vista do Rio, a partir de Niteroi), e do lado Argentino pela proximidade quase visceral com a torrente de água, de cima e de baixo.



O barco parte de uma pequena e tranquila praia fluvial, no final de uma trilha pela selva. Inicialmente ele vai muito rápido, desviando de eventuais rochas semi-submersas, em um rio canalizado entre dois barrancos tão altos quanto ele é largo. As cataratas começam com um murmúrio, que vai ficando mais alto enquanto elas primeiro aparecem, distantes a frente, e depois crescem e continuam a crescer impossivelmente altas e barulhentas. Quando formam um paredão de agua e pedra ao nosso lado, o barco começa a ter dificuldades em vencer a correnteza. Na entrada da garganta, o gradiente da superfície líquida já é notável; o barco tem que praticamente subir uma colina de agua escoente. Lá dentro, estamos imersos em uma chuva estacionária lançada pelos gaisers produzidos pela água que cai espalhafatosamente sobre as pedras e sobre o rio. Subimos e descemos em cima de ondas um tanto incoerentes, que se propagam de um lado para outro, indecisas*.

Depois de um espaço de tempo indefinível, eu estava em outro cais, enxarcado até os ossos, e com uma trilha a minha frente levando até o topo das cataratas, onde reencontrei meus amigos. Saimos do parque a noite; eu e Mariana para caçar algum lugar para ficar em Puerto Iguazu (e não em Santo Ignacio...), e os outros de volta para o Brasil.

Foi, no final das contas, uma viagem interessante, principalmente pelas companhias, planejadas e extemporâneas. Mas da próxima vez que eu vier a Foz, farei o meu roteiro jesuita. Com meu érre xê.




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* Repare que o volume da agua não tem dificulde em encontrar o seu caminho para sair da garganta. É o momento linear transmitido pelas ondas, ou pelo menos aquele associado aos seus comprimentos de onda mais longos, que têm dificuldade de enxergar a saida.

PS: Todas as fotos estão no flickr.

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segunda-feira, 6 de junho de 2011

Centro de Convenções Rafain, Foz do Iguaçu
Barreiras culturais



Físicos e biólogos, mesmo quando discutem o mesmo assunto, parecem não só pertencer a disciplinas distintas como habitar planetas diferentes. Em se tratando de modelos que procuram explicar fenômenos biológicos, físicos procuram obter grandes sínteses e elaboram teorias matematicamente elegantes mas de aplicabilidade as vezes dúbia; enquanto biólogos analizam detalhadamente cada sistema e produzem classificações e taxonomias barrocamente detalhadas de seus componentes, que descrevem muito mas prevêem muito pouco.

O parágrafo acima é o começo do anúncio de uma palestras que dei no departamento de física da UFMG na sexta passada, para um plateia mixta de físicos e biólogos. O que mostra que eu não hesito em reciclar textos usados, ou possivelmente ofender a minha audiencia. Mas o que é ofensivo nem sempre é falso; de fato, o contrário é provavelmente mais comum. As diferentes atitudes das duas comunidades científicas referentes a sistematização do conhecimento vêm, obviamente, das diferenças entre seus respectivos objetos de estudo, e o reconhecimento pragmático daquilo que historicamente foi bem sucedido. Mas eu sou um físico trabalhando entre biólogos. Mesmo quem mora no estrangeiro a anos ainda se surpreende com os hábitos locais ocasionalmente. Da mesma forma, para mim, o choque cultural ainda é algo sempre presente. Eu falo a lingua deles com mais desenvoltura agora, mas nunca vou perder o meu sotaque.

No primeiros seminários que dei na biologia, o choque cultural foi mútuo. Da primeira vez, fui falar sobre leis de escala e invariância por escala. 'Vamos começar com uma matemática levinha' - pensei - 'assim eles vão se acostumando'. Na segunda equação, a minha plateia já trocava olhares assustados; alguns slides depois, os olhares se dividiam entre semi-catatônicos e exasperados. Eu demorei algum tempo até conseguir explicar alguns dos conceitos que eu acho tão fascinantes de forma que eles ao mesmo tempo entedessem, e considerassem relevante. Ao mesmo tempo eu não sabia nada de biologia. Eu conhecia diversos termos, claro, e era até bastante familiar com alguns dos conceitos centrais. Mas era preciso me levar pela mão para que eu fosse capaz de produzir algo aplicável. Eu era uma espécie de artilharia de sítio matemática, a ser empurrado até os muros de algum bastião inimigo mais problemático para abrir caminho para tropas amigas.

As poucos a comunicação foi ficando mai fácil; assim como duas espécies acopladas biologicamente, o físico e os biólogos evoluiram até se adaptarem uns aos outros. A minha matemática, se não é completamente entendida, pelo menos é mais bem aceita; trabalho agora com dois alunos de biologia que não só são extremamente proficientes em programaçao, mas também me acompanham em minhas elocubrações sobre redes neuronais. E quando peguei a minha chefe rabiscando equações no caderno durante uma palestra que (supostamente) assistíamos, quase pensei 'my task here is complete'.

Em vista disto, dar uma palestra na física foi quase como voltar para casa. Uma audiência que não acha que matriz simétrica é um filme com o Keanu Reeves. Pessoas que encaravam equações como algo natural; ocasionalmente eu ficava reflexivamente esperando uma reação adversa perante alguma manipulação matricial menos trivial... E ninguem parecia particularmente alarmado! Por outro lado, eu já havia me acostumado a falar sobre axônios, oligodendrócitos e colunas funcionais corticais sem ter que dar maiores explicação; mas desta vez tinha que me dar conta que a minha nova audiência talvez nunca tivesse ouvido estes termos.

De qualquer forma, a palestra correu bem (a menos de um ligeiro estouro do tempo e um final de seminário dito no estilo Eneas). É uma familia interessante de modelos neuronais. Em um deles, eu faço uma soma de todos os caminhos fechados que passam por cada neurônio, associando uma fase a cada ciclo de modo que ciclos sîncronos sejam somados construtivamente.

Estou agora em Foz do Iguaçu, usando o meu chapeu de cosmólogo. Esta ocorrendo uma espécie de congresso de congressos das várias áreas da física brasileira. O encontro está sendo excelente, bem organizado e com trabalhos muito interessantes. Depois escrevo mais; estou com planos para um excursão paraguaia um tanto inortodoxo.

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