sábado, 31 de março de 2007

Casa, Rio
Elemento suspeito portando uma folha de bananeira

. foto Arbyreed

O ar húmido e quente cobre a cidade como uma manta gasta. Uma noite tropical carioca como tantas outras, na qual os desavisados costumam confundir placidez com segurança. Seus habitantes vem e vão, furtivos, rápido demais para deixar mais do que um leve e acre cheiro de medo no ar. Se são bons ou ruins, feios ou bonitos, não importa. A única distinção relevante é entre aqueles que aprendem rápido, e aqueles que contraem uma dor de cabeça de 9 mm e não acordam mais. O nome é Bruno. Bruno Mota, físico e cozinheiro.

O plano era simples. Eles sempre são. Fazer um jantar tailandês para alguns amigos. Arroz aromático, um curry de carne (mais indiano do que propriamente tailandês), e um peixe com leite de coco e erva cidreira, embrulhado em folha de bananeira. O único problema era arranjar uma folha de bananeira.

Já era noite quando saí para comprar os ingredientes, e como sempre estava atrasado. Eu pensava inicialmente em achar alguma bananeira nas margens do canal, mas não só não vi nenhuma como o cheiro da água era um desestimulo sério a qualquer aventura culinária com a flora ciliar local. Sem mais tempo ou ideias, perguntei aos guardas de um condomínio semi-fechado ao lado se eles conheciam alguma bananeira por perto. Depois de verificarem que eu não estava usando um eufemismo obscuro para algum tipo de atentado ao pudor, eles foram até bastante solícitos. A possibilidade de uma poda freelance de uma das várias bananeiras que adornam os jardins das mansões próximas foi rapidamente aventada, e ainda mais rapidamente descartada. Um deles então se lembrou de uma bananeira solitária, em um matinho intersticial próximo a entrada para o tunel Zuzu Angel. Agradecido, subi na minha bicicleta e pus-me a caminho.

O local era de fato um tanto ermo e mal iluminado, ao lado de uma escada de acesso a uma escola municipal, obviamente fechada durante a noite. Era um pequeno triângulo irregular com algumas arvores desmilinguidas. No centro, qual um Ent adormecido, havia um glorioso bananal! Podei duas das folhas menos rasgadas, e comecei a alegremente cortar fora a parte carnuda com meu canivete. Só notei o carro da polícia parando na calçada em frente quando soou o 'WAAAAM' da sirene.

Um policial que vê um indivíduo cortando com uma faca alguma coisa não identificada em um mato ermo tem direito a nutrir alguma desconfiança. Os dois presentes na viatura não pretendiam correr riscos. Sairam do carro com os olhos fixos em mim e mãos firmes nos coldres. Um deles, careca e barrigudo, levava uma lanterna na mão esquerda, mas por algum motivo preferiu não usa-la. Mas foi o seu companheiro mais jovem, com o porte de um lenhador, que falou primeiro:

"O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO AÍ?"

Eles provavelmente não se surpreenderiam, e saberiam o que fazer, se eu dissesse 'retalhando a minha esposa', ou 'separando a maconha'. Mas quando eu disse "Cortando uma folha de bananeira", ao mesmo tempo em que deixava o canivete no chão e levantava uma folha, a minha versão tropical do ramo de oliveira, houve uma pequena pausa enquanto eles lidavam com a dissonância cognitiva. O lenhador chegou mais perto e perguntou, ainda agressivo mas com um traço de curiosidade na voz.

"Para quê você quer uma folha de bananeira?"

"Para cozinhar. Vou fazer um jantar hoje"

"Você come a folha?!" -- perguntou o careca, horrorizado, a única coisa que disse durante todo o encontro.

"Não! Eu uso para embrulhar o peixe... E o vapor bla bla bla leite de coco bla bla bla culinária tailandesa, que é bastante distinta da indiana, e bla bla bla" -- fui ficando entusiasmado enquanto descrevia o prato, e o resto do menu, e por pouco não emendo uma análise da situação política na Birmânia e um comentário sobre observação de cometas. Em algum momento do meu monólogo, o careca decidiu que eu era maluco e entediante, mas inofensivo. O lenhador por outro lado foi ficando mais interessado.

"Que comida diferente! E você come com arroz?"

"É! Se você conseguir achar, fica melhor com arroz de jasmim"

"Hmmm... Acho que vou pedir para minha mulher cozinhar isso um dia"

"Excelente ideia! Aqui, leve a receita para ela, que em casa eu imprimo outra"

Ele hesitou por alguns instantes, como se indeciso entre pedir a receita do curry ou me convidar para o jantar; mas talvez lembrando-se das circunstâncias do nosso diálogo, simplesmente se despediu amigavelmente. Ele voltou então para o carro, para o alívio do seu colega, que provavelmente agradecia aos céus por minha idoneidade aparente, que o desobrigava de ir até a delegacia mais próxima ouvido a respeito dos méritos das especiarias ou sobre as várias maneiras de se cozinhar um peixe. Eles desapareceram na noite, tocando a sirene para avançar no transito ainda arrastado.

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